"... lá pelos cinquenta, quando vislumbrava
um certo tipo de fim chegando, juntei o resto que se podia contar e comprei um
barco de pesca no litoral norte e fui viver no meio do mar,
não tinha casa para onde voltar, apenas
um atracadouro num vão de ninguém num braço de rio onde descarregava alguns
peixes e entregava em lugares certos, pouco e constante, nenhuma conversa ou
perguntas, cachaça e cerveja e uma saída silenciosa até o dia seguinte,
vivi anos nesta rotina de silêncio e
compromissos pequenos, com alguns e comigo mesmo, olhando o mar em volume
flutuante dia e noite, chuva e sol ardente que torrou e escureceu e tornou
minha pele em couro de lagarto, uma armadura trincada sobre um poço de memórias
tentando não se lembrar de si mesmo,
o som da água noturna batendo em schlaps
suaves na beira do barco em noites calmas ou o solavanco virando força de
destruir, querendo varar a madeira nas noites e dias de fúria, o mar no desejo
de inverter tudo de posição e jogando o barco pra ver seu fundo de esquecimento
e encerramento, uma cortina que podia chegar como se soubesse que era ela mesmo
que estava sendo procurada, silêncio em ambos os casos e situações, sem medo da
morte e do seu rugido, patadas apenas, como outras de outros tempos e
circunstâncias,
descendo o rio além do meu ancoradouro
havia um hotel pequeno de um sindicato qualquer e Lourdes, uma negra bela e
ciente dos olhares de desejo meus e dos outros, era quem recebia meus peixes
todas as manhãs, com seu uniforme azul de golas brancas e coxas grossas a
mostra, naquela hora em que os peixes escorriam para dentro da sua bacia de
alumínio e eu mesmo entrando por ela por outros lugares em pensamento e Lourdes
sorria, “até amanhã”,
e aumentavam os solavancos no mar, mesmo
nas noites de calmaria, eu era um lobo do mar forçado, moldado na obrigação de
se virar por algum lugar pra não ter que interromper a luta antes da hora,
então eu saía para o convés do meu pequeno barco e via o continente ao longe,
um recorte curvo ao longo das montanhas de costas peladas e verde-escuro na
noite, as luzes enfileiradas e amarelas na linha do desenho, e Lourdes na direção
certa do olhar, na espera do dia seguinte,
e nasceu Antonio um ano depois,
depois que Lourdes começou a vir me ver à
noite, em um barco alugado que a deixava por lá depois do horário do hotel, e
trepávamos horas e horas no balanço da água, Lourdes de olhos negros e boca
vermelha e grossa, de poucas palavras como eu,
e Antonio puxara Lourdes com um leve
tempero de caiçara falsificado meu,
e ele cresceu e aprendeu a pescar
comigo, me ensinando de volta algumas coisas que eu tinha esquecido, um garoto
que tinha o olhar perdido de vez em quando na vastidão do mar, ao entardecer,
quando ficava mudo além do que eu e ele éramos no normal, maldição essa herdada
de mim,
mas, se eu pude sobreviver, mesmo
olhando adiante sem entender, ele não conseguiu e saiu um dia pela manhã e não
retornou e Lourdes saiu pela cidade perguntando pelo menino e eu voltei para o
mar para não morrer antes da hora, agora que uma coisa nova chegava eu não
tinha coragem de ver uma outra dor novamente, aquele tempo de suportar tinha passado,
eu tinha que morrer se tivesse que ver outro corpo inerte, essa repetição na
minha frente,
e avancei para o alto-mar, para uma ilha
longe da vista do continente e desci por ali e dormi na areia naquela noite,
olhando o céu de estrelas, uma noite sem lua, a ilha e tudo escuro, o mar só no
barulho das pedras e nas paredes do barco ali perto, uma noite de pesadelos e
arrependimentos,
e dois dias depois um barco encostou na
ilha e Lourdes se ergueu na proa, com um dos pés apoiado na beirada,
“você vem?”
“e Antonio?”
ela chorou de longe olhando pra água
batendo no barco,
“ele sumiu...eu vou embora pra São
Paulo, você vem comigo?”
“não”
ela ficou lá, parada por um tempo,
seu olhar balançando,
aquela figura escura e bela na proa do
barco e eu achando que tudo seria melhor se eu esquecesse e seguisse,
o barco virou pra ir embora e Lourdes
gritou adeus e alguma coisa mais que de longe eu pensei que era aquela coisa
boa de se ouvir da boca de uma mulher, mas misturou com as ondas nas pedras e
as gaivotas em volta do barco,
e logo o mundo era eu, o mar, a ilha e o
barco na espera de alguma coisa, de um próximo passo, o último que finalmente
veio dar aqui..."
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