domingo, 2 de outubro de 2016

NORTE TODA VIDA

Trecho de Norte toda Vida:


"... lá pelos cinquenta, quando vislumbrava um certo tipo de fim chegando, juntei o resto que se podia contar e comprei um barco de pesca no litoral norte e fui viver no meio do mar,
não tinha casa para onde voltar, apenas um atracadouro num vão de ninguém num braço de rio onde descarregava alguns peixes e entregava em lugares certos, pouco e constante, nenhuma conversa ou perguntas, cachaça e cerveja e uma saída silenciosa até o dia seguinte,
vivi anos nesta rotina de silêncio e compromissos pequenos, com alguns e comigo mesmo, olhando o mar em volume flutuante dia e noite, chuva e sol ardente que torrou e escureceu e tornou minha pele em couro de lagarto, uma armadura trincada sobre um poço de memórias tentando não se lembrar de si mesmo,
o som da água noturna batendo em schlaps suaves na beira do barco em noites calmas ou o solavanco virando força de destruir, querendo varar a madeira nas noites e dias de fúria, o mar no desejo de inverter tudo de posição e jogando o barco pra ver seu fundo de esquecimento e encerramento, uma cortina que podia chegar como se soubesse que era ela mesmo que estava sendo procurada, silêncio em ambos os casos e situações, sem medo da morte e do seu rugido, patadas apenas, como outras de outros tempos e circunstâncias,
descendo o rio além do meu ancoradouro havia um hotel pequeno de um sindicato qualquer e Lourdes, uma negra bela e ciente dos olhares de desejo meus e dos outros, era quem recebia meus peixes todas as manhãs, com seu uniforme azul de golas brancas e coxas grossas a mostra, naquela hora em que os peixes escorriam para dentro da sua bacia de alumínio e eu mesmo entrando por ela por outros lugares em pensamento e Lourdes sorria, “até amanhã”,
e aumentavam os solavancos no mar, mesmo nas noites de calmaria, eu era um lobo do mar forçado, moldado na obrigação de se virar por algum lugar pra não ter que interromper a luta antes da hora, então eu saía para o convés do meu pequeno barco e via o continente ao longe, um recorte curvo ao longo das montanhas de costas peladas e verde-escuro na noite, as luzes enfileiradas e amarelas na linha do desenho, e Lourdes na direção certa do olhar, na espera do dia seguinte,
e nasceu Antonio um ano depois,
depois que Lourdes começou a vir me ver à noite, em um barco alugado que a deixava por lá depois do horário do hotel, e trepávamos horas e horas no balanço da água, Lourdes de olhos negros e boca vermelha e grossa, de poucas palavras como eu,
e Antonio puxara Lourdes com um leve tempero de caiçara falsificado meu,
e ele cresceu e aprendeu a pescar comigo, me ensinando de volta algumas coisas que eu tinha esquecido, um garoto que tinha o olhar perdido de vez em quando na vastidão do mar, ao entardecer, quando ficava mudo além do que eu e ele éramos no normal, maldição essa herdada de mim,
mas, se eu pude sobreviver, mesmo olhando adiante sem entender, ele não conseguiu e saiu um dia pela manhã e não retornou e Lourdes saiu pela cidade perguntando pelo menino e eu voltei para o mar para não morrer antes da hora, agora que uma coisa nova chegava eu não tinha coragem de ver uma outra dor novamente, aquele tempo de suportar tinha passado, eu tinha que morrer se tivesse que ver outro corpo inerte, essa repetição na minha frente,
e avancei para o alto-mar, para uma ilha longe da vista do continente e desci por ali e dormi na areia naquela noite, olhando o céu de estrelas, uma noite sem lua, a ilha e tudo escuro, o mar só no barulho das pedras e nas paredes do barco ali perto, uma noite de pesadelos e arrependimentos,
e dois dias depois um barco encostou na ilha e Lourdes se ergueu na proa, com um dos pés apoiado na beirada,
“você vem?”
“e Antonio?”
ela chorou de longe olhando pra água batendo no barco,
“ele sumiu...eu vou embora pra São Paulo, você vem comigo?”
“não”
ela ficou lá, parada por um tempo,
seu olhar balançando,
aquela figura escura e bela na proa do barco e eu achando que tudo seria melhor se eu esquecesse e seguisse,
o barco virou pra ir embora e Lourdes gritou adeus e alguma coisa mais que de longe eu pensei que era aquela coisa boa de se ouvir da boca de uma mulher, mas misturou com as ondas nas pedras e as gaivotas em volta do barco,
e logo o mundo era eu, o mar, a ilha e o barco na espera de alguma coisa, de um próximo passo, o último que finalmente veio dar aqui..."

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