Jesus está no compartimento inferior, impresso num folheto
verde, abaixo dos maços de cigarro. Cristo posto à prova sob os vícios, entre
fotos de membros gangrenados e pulmões pretos de fumaça e um garoto à beira de
uma cama de hospital onde seu pai definha. Jesus é o contraponto à advertência,
a promessa de proteção e cura, o corpo crucificado pronto para toda e qualquer
obra. Engulo mais um pouco da minha Coca. Estou de frente a uma prateleira de
bebidas. Não há nada ali que eu já não conheça de outros tempos. Um casal de
moradores de rua entra e pede uma marmitex. Ela tem uma embalagem de batatas
Pringles dentro de uma sacola de supermercado. Alguém grita um nome na rua e
fala dos presos que estão voltando do indulto de Dia dos Pais. É naquela praça
que eles chegam e partem nesses períodos. É quando escuto os julgamentos prontos
e reconheço que vivo numa terra onde não existe a remissão, a redenção, onde
nenhuma sentença jamais será dura o suficiente para satisfazer os idiotas. Que
não estão ali, mas nos escritórios em volta, com suas roupas iguais, com seus sapatos iguais, com sua falta de imaginação. Divago. Jesus está preso num compartimento de vidro, sob
maços de Marlboro e ao lado de uma tabela de preços. Natalie, que tem o nome do
filho tatuado no braço, traz o marmitex para o casal e lhes deseja boa sorte.
Os outros funcionários riem. Eu olho para Natalie diferente dos outros dias.
Seu olhar me diz que eu não a conheço. E segue para secar e colocar os talheres
em saquinhos plásticos, num canto do salão. A prateleira de bebidas reflete as
luzes de dentro e da rua, assim como as garrafas de cores diversas, do líquido
e do vidro, e dos tons que se alteram quanto mais se olha para elas. É um campo
dourado de trigo balançando ao vento, de riachos de águas geladas e puras, de
mãos revirando os grãos sagrados, dos tonéis de madeira e do cheiro da fermentação
que adensa o entorno e entorpece os sentidos, dos rótulos elaborados por mãos
geniais, dos homens e mulheres de outros mundos em seus carros e mansões e todo
poder do mundo. Há o som do bacon e dos bifes fritando sobre a chapa quente, há
o motorzinho do espremedor de laranjas, há o tilintar do copo de café colocado
sobre o balcão, para o homem que acabou de pagar a conta. Termino o sanduiche e
olho para Jesus preso entre os cigarros e a tabela de preços. Peço a conta e
paro na porta. Olho a praça. O casal de sem-teto come em um dos bancos de
cimento sob as árvores. Sinto o gás da Coca me pressionado o estômago. Olho
para o sol e peso os dias. E saio levando na cabeça o Jesus preso num impresso
verde, dentro de um vidro, sob vícios e preços.
terça-feira, 11 de agosto de 2015
sábado, 25 de julho de 2015
RATOS NO NEVOEIRO
Ando
de um lado para o outro, já percorri esse saguão umas duzentas vezes e ainda
não consegui definir o que me incomoda. Meu voo deveria chegar em uma hora, já
fiz o check-in e me sinto abandonado, o último homem na face da terra,
segurando uma mala pequena, com a terrível sensação de que não saberei dar o
próximo passo. Carrego a sina dos tolos que querem mudar o mundo, levo nos
ombros as dores de outros, sem saber o que fazer com as minhas e é tudo muito
pesado. Entro na livraria e compro uma agenda do Mario Quintana, folheio os
dias que virão e procuro me embalar nos versos curtos do homem que viveu em
hotéis, e lembrei-me de que também já fiz isto, entrava e saia de hotéis, bebia
até altas horas conversando com o barman que me ouvia com a benevolência
adquirida na profissão. Mas minha afinidade com o Poeta termina aí, não deixei
obra alguma, a não ser folhas rabiscadas sobre o criado-mudo, que eu esperava
fossem lidas pela arrumadeira da manhã.
O
tempo não passa, são quase dez horas da manhã, tomo cerveja no bar do piso
superior, voos e aterrisagens foram suspensos, baixou um nevoeiro repentino
sobre o aeroporto. O garçom atrás do balcão parece não ser de muita conversa, é
assim em geral em aeroportos e rodoviárias, tudo muito impessoal, nenhum laço
se cria, as pessoas que chegam e vão não serão as mesmas amanhã, todos correndo
em grupos no arrastão do tempo. Lá fora, o nevoeiro sobre os aviões parados
deixa uma fresta na lateral da pista, por onde se vê edifícios cortados ao
meio. Abro a agenda, hoje é 03 de abril e como se fosse uma folhinha do
Seicho-no-ie, leio a mensagem do Poeta:
“Olho em redor
do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após
caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que
está somente afogando os problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a
milenar inquietação do mundo! ”
Vou
até próximo a janela e sento em uma das mesas junto a parede de vidro. Em
frente, em outra divisão daquela ala, está um grupo de garotos olhando para a
pista, têm os rostos colados no vidro, um jeito de frustração pela paralisia
trazida pelo nevoeiro. Devem ser meninos das proximidades do aeroporto, vêm ali
observar a chegada e a saída dos aviões, suas roupas são de gente pobre, ainda
nessa idade talvez não saibam que a parede de vidro é o menor dos obstáculos
que os separam daquele mundo. Não quero pensar sobre isto, já deveria estar no
alto, no inicio da estrada para outro ponto, os aviões devem estar sendo
desviados para outro lugar, peço uma vodca, um casal de executivos senta-se na
mesa a minha esquerda. Sinto um certo conforto em saber que somos iguais, se
fossem melhores do que eu estariam na sala vip, partilhamos o mesmo degrau
social neste momento.
Ela morreu na tarde
do dia 25 de março, faz um ano e pouco que meu mundo desabou. Tinha os olhos
negros mais belos da face da terra e relutou em morrer sabendo que me deixaria
órfão. Não sofreu como sofrem os portadores das grandes doenças que fazem a
riqueza da indústria farmacêutica e a fama e fortuna de médicos especialistas.
Também não queria falar disto, mas é impossível não lembrar que tudo começou
com uma carta enviada por uma tal Anair Medeiros, uma mulher sem endereço no
verso do envelope, e sendo um nome que não me dizia nada, era uma carta
anônima. Passei a seguir minha mulher a distância, vigiava seus passos durante
todo o dia, o lugar citado na carta era um prédio velho na região da Luz.
Passei a usar as armas dos covardes, frases de duplo sentido, ironias prontas
para qualquer instante, silêncios prolongados, olhares de desconfiança, risos
lacônicos. À noite, quando ela me procurava, e ela procurava sempre, eu virava
do lado, tivera um dia cheio, muitos problemas no escritório e outras evasivas
mais. Mas não conseguia dormir, passava as noites olhando para o guarda-roupas,
decorando as linhas tortuosas do seu revestimento de pinus e o arremate
defeituoso junto ao teto. Remoía minhas desconfianças em silêncio, imaginava
chegando no momento exato em que o outro estaria sobre ela, em um quarto sujo,
de colchão rasgado e sem lençóis, janela estreita de cortinas encardidas, o
banheiro sem porta, o vaso sanitário imundo, a ducha Corona velha e quebrada, o
caminho ferruginoso da água que vaza do cano e escorre pela parede. Passei a
beber mais do que o costume, chegava tarde no escritório, a barba por fazer,
saía no meio das reuniões, no meio do expediente, para segui-la e sempre bebia
mais um pouco nessas horas. Comia pouco, emagreci, um dia ela me pegou para uma
conversa, queria saber o que estava acontecendo comigo, eu disse que nada,
apenas um grande turbilhão movendo minha vida, virando tudo do avesso, ela que
me deixasse em paz, antes de sair perguntei se ela conhecia uma tal de Anair
Medeiros, ela disse que não, e eu disse que ela deveria escolher melhor suas
amizades. Foi indo tudo assim, sem esclarecimentos de lado nenhum, o inferno
foi se formando e um dia, quando eu estava parado em uma rua suspeita na região
da Luz, eu a vi entrando no tal prédio. Ficou lá dentro umas duas horas, pensei
em ir atrás, mas não tive coragem, se fosse pego ali não saberia explicar,
então esperei. Saiu do mesmo jeito que entrou, apressada, entrou no carro e
desapareceu, e eu fui para o escritório.
A carta de demissão estava em cima da mesa, não me despedi de ninguém e
fui para o litoral, parei no Guarujá, tirei os sapatos e fui andando pela
areia, um navio cargueiro equilibrava-se na linha distante, um sol tímido
entrecortado de nuvens ralas e velozes, encostei numa barraca e pedi uma
caipirinha. Por um instante eu pensei que o mundo estivesse se movendo em
câmera lenta, o homem passava a faca firme sobre o limão e as fatias iam caindo
lentamente, quando uma deitava sobre a tabua a outra caia sobre ela, devagar, e
a faca reluzia e o homem sorria, olhando para mim e para a faca. Virei as
costas de repente e respirei fundo, tentando puxar do mar alguma coisa que
interrompesse aqueles pensamentos.
Cheguei em casa era madrugada, nem sabia como havia feito o trajeto de
subida da serra, a vista estava turva, eu havia bebido além da conta, as luzes dos
postes do estacionamento se multiplicavam e se entrelaçavam como argolas, eu
reclinei o banco e dormi. Acordei com o sol batendo em meu rosto e ela batendo
no vidro do carro. Entramos no apartamento e ela perguntou por onde eu tinha
andado, disse que não sabia, que não lembrava de nada, bebedeira com os amigos
do escritório, ela sabia que era mentira, tinha ligado para um deles a noite a
minha procura e já sabia da minha demissão.
Uma
gargalhada na mesa vizinha me traz de volta ao aeroporto e o nevoeiro agora
encobre os aviões na pista. Tiro minha passagem do bolso e olho o destino e não
sei o que vou fazer por lá, Nova Zelândia, de lá só sei das ovelhas e das
montanhas, mas é um lugar distante e é para lá que vou, se esse avião um dia
chegar. Tenho medo dos ratos que estão do outro lado do nevoeiro, todas as
noites, quando um silêncio inexplicável cala o mundo, eu os ouço gritando nos
subterrâneos da cidade, vejo-os me arrastando pelos bueiros e hoje eles são
ratos de névoa.
Ela
ficou estática no meio do apartamento, esperando explicação, eu entrei para o
banheiro. Depois do banho saí sem dizer qualquer palavra, ela estava trancada
no quarto. Bebi até altas horas, entrei nos puteiros da região da Brigadeiro,
comi umas quatro ou cinco putas, em meio a cerveja e vodca e conhaque e
cigarros, eu parecia ter entrado em outro mundo ou era em outro mundo que eu
queria entrar. Na madrugada fui até o prédio na Luz e parei o carro em frente,
algumas putas estavam na porta. Desci e subi as escadas com uma delas, entrei
em um quarto imundo, o colchão estava rasgado, virei as costas e desci as
escadas correndo, quase caindo no fim. Entrei no apartamento na madrugada, as
luzes estavam apagadas, abri com cuidado a porta do quarto e vi na penumbra seu
corpo adormecido, virado para o canto. Voltei para a sala, peguei uma garrafa
de uísque na prateleira da estante e fui bebendo, ouvindo os primeiros sons do
dia chegarem pela janela.
Acordei assustado com sol batendo sobre as minhas pernas, havia
adormecido no sofá, o relógio no videocassete marcava dez horas, eu olhei a
porta do quarto, continuava trancada. Fui até o banheiro, arreganhei os dentes
para o espelho, tinha olheiras visíveis, o cabelo desarrumado. Entrei no banho,
sob o jato quente ouvi o telefone tocando, e tocou até que desistissem, um
temor repentino cresceu na boca do estômago. Desliguei o chuveiro apressado,
enrolei a toalha no corpo e sai, deixando uma trilha molhada pelo corredor.
Abri lentamente a porta do quarto, ela estava deitada na mesma posição, dei a
volta na cama e fiquei apavorado. No chão, junto ao criado mudo, estava um copo
de uísque e do lado um vidro de comprimidos, seu braço direito pendia a alguns
centímetros do piso de vinil.
No
hospital, na região do Jabaquara, eu olhava seu rosto pálido, vigiava seu sono
profundo já de alguns dias, havia poucas chances. Um dia ela abriu os olhos e
me sorriu, eu perguntei por que, ela manteve o sorriso, eu perguntei se ela
conhecia Anair Medeiros, ela fechou os olhos, de novo e para sempre.
Olho a passagem sobre a mesa e olho a janela e além dela não há mais
nada, o nevoeiro engoliu a paisagem. Desço para o saguão e me avisam que um
ônibus irá nos levar para o outro aeroporto, tenho duvidas dessa minha atitude,
penso em rasgar a passagem. Entro no ônibus e ele vai cortando a cidade.
Sinto-me cansado, há tempo para um cochilo, mas refreio a ideia, o nevoeiro
ainda está lá fora e eu sei o que há no meio dele.
sexta-feira, 24 de julho de 2015
MÉTODOS E CONVICÇÕES
Meu nome é Sardinha. Antônio Gomes de
Sá Sardinha. Sou prefeito. Não, não o prefeito da cidade toda, ainda não. Tenho
em minhas mãos uma das Regionais, algo conquistado com muita luta, tive que dar
muito sangue, entrei em conchavos, fiz muita bajulação com as pessoas certas, é
como dizem, é preciso estar no lugar certo na hora certa.
Olho esta cidade com muito orgulho e
principalmente o pedaço dela que me pertence. Tenho de dividir um pouco, você
entende o que quero dizer, sabe como é, os vereadores, por trás deles os
fiscais, gente disposta a dar porrada, tudo necessário, a cidade é difícil, se
não estiver todo mundo amarradinho não funciona. Aprendi com gente graúda, vi
como é que se faz, quero dizer, a maneira como se faz.
A vida está difícil, ouço esta lamuria
o dia todo, muita gente preguiçosa pelas ruas, muito vagabundo deitado pelas
calçadas, muitos pedintes nos faróis, não sei de onde aparece essa gente, a
noite então é um inferno.
À noite, sim. Nós temos um plano,
sabemos o que o cidadão respeitável, o que paga impostos, quer. Ele não se
interessa por métodos, quero dizer, quando a coisa estoura ele pode até se
indignar, faz jeito de democrata, aquela história de ir e vir, direitos
humanos, mas é uma dorzinha que passa rápido, se vê bons resultados ele
sossega, não se pode carregar o mundo nas costas.
No fundo eu tenho muita pena dessa
gente, sou cristão, vou à missa todos os domingos, confesso, comungo, doações
faço pouco, se a gente solta a igreja acomoda, eles têm que fazer mais, não
quero meu dinheiro sendo usado em politica, Cristo fundou uma igreja não um
partido.
São pessoas de todos os lugares, o País
é grande, e por ser tão grande poderiam procurar outro paradeiro, as
oportunidades estão em todos os lugares, mas não, preferem São Paulo, pensam
que por estarem na terra do trabalho não precisam trabalhar, não sei se você me
entende.
O plano é simples. Agora é noite, bem
tarde na verdade, e estou na praça da Sé. Há mendigos espalhados por todos os
cantos, nas escadarias da igreja, nas marquises das lojas, em volta do metrô,
uma nojeira. Daqui a pouco chegam os caminhões, são só dois. Ainda estamos no
começo e se o negócio der certo a gente pode pôr mais veículos, tem sempre
particulares dispostos a colaborar, serve qualquer coisa, ônibus, até mesmo
vans já ofereceram, não precisamos nem usar verba da prefeitura. É como eu
disse, a nossa reciprocidade é o sigilo.
Está uma noite sem lua, tem até aquele
friozinho gostoso que é característico dessa época, seria melhor estar em casa com
meus filhos, mas é um trabalho que precisa de comando, tem gente que pode achar
que não é muito certo, mas estou convicto, outro dia mesmo eu li algo sobre a
ética da convicção, parece que era alguma coisa assim.
Já fizemos isto algumas noites, ainda não
dá para notar resultados, sai dois vem três. Mas uma hora a fábrica não vai
mais dar conta.
Lá estão eles, os caminhões estão
encostando, vamos à nossa função social, vamos pegando um grupinho aqui, outro ali,
alguns têm dificuldade de acordar, deve ser por isto que morrem queimados
facilmente. A maioria cheira a álcool, também à urina e fezes, dias sem tomar
banho, é preciso ter estômago, o cidadão em casa não imagina o que fazemos por
ele. São mulheres, crianças, a maioria de cor, não digo negro porque podem
achar que sou racista, e isto eu não sou, mas deveriam estar felizes por ser
maioria em alguma coisa.
Dizemos que somos do departamento
social da prefeitura, não usamos qualquer uniforme, não queremos fazer
propaganda, a verdadeira solidariedade é anônima. Quando entram no caminhão
parece que estão felizes, acho que exagero, parecem ter esperança, é o que
aprendem desde que nascem, e por conta desse sentimento não fazem mais nada,
sempre à espera que lhes deem de tudo. As crianças ficam grudadas nos adultos,
devem estar acostumados uns com o cheiro dos outros, talvez sintam frio,
carregam seus cobertores imundos, mendigo antigamente se cobria com jornal.
Temos um médico que nos acompanha, na
verdade não é medico, mas sabe tirar uma pressão, e sabe dar injeções, está
certo que do jeito que ele aplica deve doer, mas é uma dor que logo eles
descansam dela, é disto que precisamos.
O caminhão vai andando, vou na cabine
de onde observo tudo, gosto de ver como nosso medico vai aplicando as injeções,
é vitamina ele diz, tudo muito calmo, é um santo.
Nem bem a gente pega a Anchieta e eles
já estão dormindo, nem percebem o trajeto, não sabem se estão longe ou perto, é
gente acostumada a estar cada hora num lugar, tanto faz.
Estamos atravessando a ponte do Riacho
Grande, lá atrás está tudo calmo, nosso medico de vez em quando dá uns
chutinhos em alguns, tudo muito delicado, para ver se tem alguém acordado, os
outros dois ajudantes parecem cochilar lá encostados na porta de saída, não são
bons vigias, mas são mais para o trabalho pesado, é incrível o peso que essa
gente tem, não comem nada, deve ser a sujeira.
Hoje vamos para a esquerda, procuramos
variar de lugar, a represa é grande, não há necessidade de correr riscos,
sempre tem algum pescador noturno por aí, gente que mais bebe do que pesca, que
está sempre dizendo que viu alguma coisa estranha. É bom prevenir.
O caminhão sai do asfalto e desce um
pedacinho de terra, o outro vem logo atrás, encostamos na beira da represa, um
dos caminhões traz sempre um bote inflável.
É sempre assim, paramos em algum lugar
aonde não haja casas, à uma boa distância da estrada, estamos na margem, um
pouco mais pisamos na água.
Sabe que aquele friozinho parece que
sumiu? Sinto um calor no rosto, você sabe do que eu falo, parece assim quando a
gente vai encontrar com a namorada, ou então quando vamos fazer aquela viagem
que estava programada há muito tempo, me sinto como uma criança quando chega na
Disney, você já foi à Disney, não foi?
A injeçãozinha do doutor funciona,
vamos colocando de três em três amontoados no barco e ninguém acorda, quando é
criança dá para por quatro, as vezes até cinco, são sempre miúdos, corpo
mirradinho.
Nessa viagem agora eu vou junto,
colocamos só dois adultos e uma criança, precaução, temos que contar eu e o homem
que vai remar.
Procuramos ir mais para o fundo, quanto
mais longe melhor, mas não paramos em um lugar só, mais espalhado é melhor.
O ajudante tira o remo da água e
acomoda em um dos lados dentro barco, o remo resvala na cabeça da criança,
parece que sentiu a água fria, mas foi só um espasmo.
Vamos deixar a criança por ultimo,
pegamos um dos adultos e vamos empurrando o corpo devagarinho para fora do
barco, sem fazer muito barulho, e num instante ele desaparece nas águas escuras. Não sei se a pessoa chega a acordar depois que afunda, mas é melhor
que não, deve ser desesperador acordar com um monte de água por cima.
Agora falta só a menina, tem a cara
suja, mas o rosto até que não é feio, os cabelos loirinhos, o mundo as vezes é
injusto, tivesse nascido em outro berço até que podia ter uma vida decente. O
ajudante vai escorregando os pés dela para a água, o corpo já desceu a metade,
vai soltá-la e ela abre os olhos e me olha, seu olhar me pede alguma coisa, ia
mexendo os lábios, mas não deu tempo, o corpo afundou todo na água.
A madrugada vai alta quando chego em
casa, um lugar confortável aqui pelos lados da Castelo Branco. As crianças
estão dormindo perto da lareira, o frio de hoje justifica. Mas não os acordo,
vou até o barzinho e pego um uísque, é preciso relaxar um pouco. Sento na
cadeira de descanso do lado da lareira, poucos passos a minha frente vejo o
rosto de minha filha dormindo, vejo a mecha dos seus cabelos loirinhos caídos
no rosto, ela abre os olhos e me olha e sinto um leve tremor na mão que segura
o uísque. Mas logo passa.
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