O Bem-te-vi com seu grito acusatório num rascunho de
paineira aqui do lado. A paisagem de outono costuma trazer o pior, na folhagem
cor de cobre e nos rastros escuros que seguem as queimadas. E traz o melhor, no
contraste acentuado de claro/escuro de um sol intenso e amarelado. A casa vai
ocupando seu desenho à beira do lago, nesta encosta seca, e triste, agora que entardece.
- Do que você lembra?
- Alguém, um grupo subindo um morro, levam, acho, sacos
nas costas, coisas que assaram para uma viagem...
- Quem são?
- Não sei...eles se voltam e me olham, e me vejo entre
eles.
- E o que ficou lá embaixo?
- Não sei, sei sim, mas não quero olhar de novo... Irá me
paralisar, irá plantar uma imagem eterna na minha cabeça...
Eu cheguei por uma estrada estreita há alguns anos. Lembrei-me
deste lugar, numa época em andava sem rumo, um carro, uma máquina de escrever,
papeis espalhados pelo banco traseiro, garrafas de bebida no porta-malas e
embaixo dos bancos. Não cabiam dois carros naquela estrada, mas era noite e eu precisava
estar ali, ao lado daquela beirada do lago, era ali que tudo tinha que
recomeçar.
- E aquilo que você falava do rio...
- Era um rio cheio, mas antes...Teatro mambembe, itinerante,
artista andarilho, que monta seu palco e arte em qualquer lugar... Então, era
como um teatro desses, aquelas pessoas todas dentro do caminhão, como se fosse
um palco, o rio vazando, a água na metade dos pneus, aquelas luzes todas, uma
terra estranha.
- Lembra-se da data?
- Não, mas alguém varria o terreiro em frente a casa
quando saímos, “pra dar sorte”, acho que alguém disse...Era uma manhã
ensolarada. Ou talvez não...
- Por que?
- A memória enfeita as coisas e fica mais bonito do que
realmente foi...
Ergui três cômodos e uma casinha fora, pra guardar
ferramentas ou fazer uma oficina para trabalhos manuais, vou ter tempo, acho
que bastante tempo agora. Escurece. E daqui a pouco vem o que me trouxe aqui.
Daqui a pouco ela vai aparecer lá, na confluência daquelas duas montanhas, e
você verá.
- Mas você falava do rio...
- Já não falei tudo dele, do rio? Já, acho que sim, é o
que me lembro de antes de adormecer e acordar no dia seguinte numa rua
cinzenta, fria...
- Onde era?
- Estávamos em frente a um bar, alguns desceram, só os
mais velhos, as crianças não, nem a mulher... Crianças e mulher ficam por último...
Engraçado, não lembro quem era ela, nem eles, sei que são pessoas que
conheço...
- Você conhece, com certeza.
Voltei a fumar, tomo uns tragos de vez em quando, é assim
com todo recomeço, as cinzas que me perseguem. Mas firmei os pés numa estrada e
num ponto de vista que agora, queira ou não, terá que seguir. Até mesmo o tempo
um dia se esgota. Coloquei duas batatas-doces para assar no fogão improvisado,
certos hábitos são um calor, um afago, um reencontro, um diálogo silencioso. Agora
já ouço mais a cachoeira, desce alta e alarma um estrondo que rola para dentro
do vale. Ainda que nem seja toda essa água, que agora mingua, nesta estação.
- Sabe tristeza? Já teve? É aquela rua, não houve memória
que pudesse por alguma cor ali. Chovia, não posso esquecer-me disto, o caminhão
deslizando na lama... Por que isto não esqueço?
- Então segue, fala do resto.
- É aqui que para... É sempre aqui... Neste ponto, não é
isto?
Vai ficar bom, não preciso muito, é um projeto velho, de
criança velha. Amortece tudo, a noite. E me liberta. Vê lá? Vem subindo,
imensa, uma aparição, redonda e inteira agora, vem clareando o vale acima até
aqui, e vai atravessar aqui por cima. Vejo tudo, se estiver acordado. É neste
lugar que vai ficar a rede, as duas colunas da varanda, quando tudo ficar
pronto. Vai ficar, logo, logo.
- Vale a pena continuar?
- Vale, vale, vai te fazer bem. Vamos...