terça-feira, 15 de novembro de 2011

PROJETOS, REFORMAS E PEQUENAS VERDADES.

ELLA me olhou do canto da sala, enquanto folheava uma revista sobre reformas e construções. Ela planejava remodelar a casa da praia e já há dias pesquisava sobre encanamentos, madeira, vitrais e um tipo de verniz marinho que protegesse algumas de suas novas esculturas de metal. Em seguida levantou-se e veio sentar-se ao meu lado, junto da lareira. Era uma estranha noite fria em pleno novembro. Acendi um cigarro e completei a frase que a fizera deixar o maravilhoso mundo da construção: “Uma viagem de seis meses, cortando o estado de Minas para o norte”. Ella esfregou as mãos calmamente, depois de estica-las para o fogo. “Isto pode ser perigoso na sua idade”, e nem disfarçou o sorriso. “Qualquer coisa é perigosa na minha idade”, sem esconder um amargo incerto, aquela coisa que chega aos poucos, até se instalar como o último freguês que nunca quer ir embora. Era um projeto antigo, vagar de cidade em cidade, colhendo material para um futuro road movie. O tempo foi se encarregando de empoeirar os planos e me tirar da trilha, por meio de trabalhos indesejados, problemas não solicitados e uma ruína financeira que arrancou lascas da minha dignidade e orgulho próprio. Ella me salvou com seu amor doce, seu talento afiado para as verdades pontiagudas e, principalmente, com seu dinheiro. “Tenho que completar isto. Uma ideia na cabeça por tanto tempo tem que ter algum fundamento”. Era aquela urgência sem aviso. Sabe, velho, o medo do tempo? “O material que você procura não está nesse trajeto, mas acho que você deve fazê-lo”. Então me beijou. Um beijo fora de hora e estranho como aquela noite fria, em pleno mês de novembro. Em seguida ela voltou para sua revista de reformas e construções. Por um instante eu tive aquela sensação recorrente de que Ella me via como uma de suas esculturas, as quais ela precisava de vez em quando aplicar uma camada de verniz. Levantei-me e fui até a janela. Um nevoeiro cobria parte da Serra da Cantareira. “Tudo errado, tudo fora do lugar”. E fui para o meu quarto, pensando que um dia desses eu teria que fazer aquele trajeto, cortar o estado de Minas para o norte.