sábado, 28 de abril de 2012

PARÁBOLA DE UM AMOR PERFEITO (1998)

As noites andam calmas ultimamente. Daqui de cima, olhando a cidade, tenho a impressão de que o mundo estagnou. Novos fatos estão ocorrendo todos os dias, eu sei. Estamos em 1998, há bombas explodindo na Índia e no Paquistão, as crises econômicas da Rússia e dos países asiáticos estão abalando as bolsas do resto do mundo, temos a velha seca do Nordeste, as invasões de terras, a violência, as drogas. Eu sei de tudo isto, mas, olhando esta noite, com sua lua branca rodeada de um arco embaçado, tenho a impressão de que o mundo estagnou. Uma sensação, talvez a solidificação de um temor, talvez a descrença de que algo novo chegue até aqui em cima e que me faça enxergar de novo, de uma outra maneira, tudo aquilo que se tornou repetitivo, velho demais. Morávamos juntos, eu e Ana Lucia, numa confortável cobertura na Cantareira, olhávamos a vida lá de cima, a realidade era aquela que havíamos forjado para nossa existência. Não tínhamos filhos, não sei bem a razão, ela sempre argumentava que filho era bom, desde que não tivesse que cuidar, não saberia lidar com aquilo, eram muito frágeis quanto pequenos e insuportáveis quando adultos, via isto nos filhos dos poucos amigos que tínhamos, se é que os tivemos. Os canalhas normalmente fazem o caminho que lhes parece correto: Enchem as esposas de filhos e depois arrumam amantes que lhes possam dar o sexo quente, por vezes animal, sem pedir grandes comprometimentos, desde que recebam uma gorda conta bancaria que lhes permitam viver com folga. Eu fazia diferente, procurava em garotas de programa algum tipo de alívio, já que Ana Lucia via o sexo como um suplício. Podia valer-me da minha posição de empresário bem sucedido e do poder de sedução que o dinheiro me conferia, podia cercar-me de algumas amantes, não mais que uma por vez, tomando sempre o cuidado de evitar envolvimentos, nada que durasse mais que dois ou três meses. Com um bom reembolso conseguiria a garantia de silêncio e também não correria o risco de chantagens já que Ana Lucia, de certa maneira, sabia das minhas necessidades como homem, seria como um acordo velado, tendo satisfação com outras mulheres eu não precisaria incomoda-la. Mas não, eu achava as putas mais honestas e, sendo um serviço pago, eu não via aquilo como uma traição. Ana Lucia gostava de sair todas as tardes, além da ginástica três vezes por semana, arranjava sempre algum outro compromisso, algum chá beneficente, alguma visita a instituições de caridade ou de deficientes, reunião de senhoras do bairro, e coisas assim. Ela não me incomodava e tampouco seus compromissos. Apesar de ser uma mulher lindíssima, nunca me preocupei com possíveis relações extraconjugais, seu desinteresse pelos assuntos sexuais era bem nítido, buscava intensamente as coisas espirituais, místicas, além de ser católica praticante, dessas de ir à missa aos domingos e tudo mais. Tínhamos uma relação afável, generosa, à noite conversávamos sobre as coisas do dia, não havia conversas exacerbadas, sempre um tom civilizado. Éramos um casal respeitado nos meios sociais, apesar da ausência de filhos as pessoas nos viam como o exemplo de um casamento sólido, nosso relacionamento era, se posso dizer assim, eficiente, burocrático. Um dia ela me disse eu vou te deixar. Disse assim, calmamente, olhando para a xícara de café, para o suco de laranja, para o mamão-papaia, para as fatias finas de presunto, para a tijelinha de cereais. Estávamos sentados junto à janela, o sol surgia sobre os morros da Cantareira e iluminava o rosto de Ana Lucia, dourados pela luz. Depois de comunicar aquela decisão a todos os apetrechos da mesa ela levantou a cabeça e me olhou e notei que em seus olhos azuis havia um brilho diferente. Talvez aquele brilho sempre tivesse sido daquele jeito, há muito eu não olhava para os seus olhos, talvez por isto eles parecessem diferentes agora. Não, havia uma diferença sim, havia algo por detrás deles, eles queriam me dizer alguma coisa, pareciam estar marejados, talvez cheios de palavras represadas. Seus lábios tremiam levemente, algo quase imperceptível, um detalhe que talvez eu não notasse em outra circunstância, ela levantou-se e passou a andar pela sala. Eu esperei, o jornal havia entornado o copo com suco sobre minha calça e o que havia sobrado pingava da mesa para o carpete. Pouco depois ela voltou-se e sentou-se novamente, era uma mulher de não demonstrar emoções, lembro-me de nunca tê-la visto chorar, disse que havia dormido pouco e sentia os olhos irritados. Eu perguntei o porquê daquilo, enquanto tentava enxugar a calça com um guardanapo, perguntei se lhe faltava alguma coisa e ela disse que tinha muito mais do que precisaria para viver, não era essa a razão. Confesso que achei minha pergunta extremamente estúpida, reduzia o nosso relacionamento ao nível dos bens materiais, não era isto que eu queria dizer, foi um ato falho, e disse isto a ela. Ela respondeu que os atos falhos são para isso mesmo, para abrir a verdade. Mas complementou dizendo que eu não me preocupasse com esse detalhe, que ela não se sentia aborrecida por aquilo, que em um relacionamento como o nosso as coisas não poderiam ser diferentes. Ajeitou os cabelos com as mãos, como se fosse fazer um rabo-de-cavalo, e sorrindo gentilmente me disse que havia decidido mudar o rumo de sua vida, que havia encontrado algumas respostas para o que procurava, coisas que eu não iria entender. Perguntei se havia outra pessoa, minha voz tremia, ela respondeu que não, que tinha muito carinho por mim e que gostaria que continuássemos amigos. Do meu escritório eu via o Edifício Itália batendo no céu, nuvens carregadas de fim-de-tarde passeavam por sobre a cidade, eu tinha o jornal aberto sobre a mesa. A conversa com Ana Lucia não me saia da cabeça, quase dez anos de convívio, eu tentava entender aonde havia errado, meu comportamento com ela sempre estivera de acordo com a maneira que ela gostava de viver, talvez eu não tivesse sido capaz de despertar nela outros sentimentos, talvez eu tivesse me acomodado, imaginava que envelheceríamos juntos, uma coisa tola eu vejo agora, mas era o que estava implícito no nosso modo de vida. Aos poucos meus pensamentos foram seguindo outra direção, eu sempre a havia deixado muito livre, lembrei-me de que, exceto os nossos amigos comuns, eu não conhecia ninguém de seu relacionamento particular, suas saídas a tarde, suas sessões de ginástica, muita coisa pode acontecer nesses ambientes, ela era uma mulher bonita. Alguém poderia ter despertado nela sensações que eu nunca fora capaz, indo direto ao assunto, alguém poderia tê-la feito descobrir o prazer de gozar, saber o que era orgasmo, sentir tesão, era uma mulher saudável, beirando os trinta e cinco anos, cheia de energia, meu Deus, como eu pude ser tão cego? Uma hora depois de eu ter ligado, o sujeito chegou no meu escritório. Não vou perder seu tempo em descrevê-lo já que é o tipo de gente que eu nunca apreciei, e de quem eu jamais imaginei que fosse um dia precisar. Era um detetive particular, que peguei de um desses anúncios de jornais, era um risco, essa gente é sempre uma incógnita, mas me garantiu sigilo e me pareceu ser um bom profissional. Eu alugara um apartamento em Moema para Ana Lucia, pedi a ela que refletisse antes de falarmos em divórcio, na verdade eu precisava ganhar tempo. Ela abriu mão do apartamento, disse que havia arrumado um pequeno no Jabaquara, que havia conseguido emprego como assistente social em uma instituição para deficientes, deixou endereço e telefone e que eu não me preocupasse. Convidei-a para jantar algumas vezes mas ela recusara. Estava cursando filosofia à noite e durante o dia não havia como nos encontrarmos, tinha todo o período ocupado com seu trabalho. Nos finais de semana disse que era impossível nos vermos, mas não me disse a razão. E assim passaram-se seis meses. O detetive esteve em meu escritório varias vezes, trouxe-me fotos, relatórios, nada que a comprometesse, por fim o dispensei, Ana Lucia levava uma vida absolutamente limpa. A minha vida perdera completamente o sentido. Curioso isto. Durante todo o tempo em que convivemos, nunca havia me dado conta do tamanho do espaço que ela ocupava em minha existência. Lembrava-me constantemente do seu sorriso amável, dos seus gestos cuidadosos, da sua preocupação em me ver sempre bem, da maneira como ela escolhia as palavras para não me ferir. Nunca dissemos eu te amo um ao outro, mas alguma forma de amor se escondia na suavidade da nossa relação. Só não havia isto, a cama. Dormíamos juntos, mas raramente nos tocávamos, era como se qualquer tentativa nesse sentido pudesse colocar tudo a perder. Não posso dizer que isto não me incomodava, sentia-me muitas vezes incompetente, lia sobre as loucuras que algumas pessoas dizem fazer na cama, sorria acabrunhado quando casais amigos comentavam suas particularidades. Era quase impossível separar sexo de uma mulher como ela, tinha devaneios, masturbava pensando nela em transas malucas, nas posições mais variadas, muitas vezes tive vontade de pegá-la a força, mas nunca tive coragem. Minha casa havia ficado grande demais, a volta do trabalho havia perdido a graça, era como se eu tivesse perdido um elo, naquele momento eu me achava com poucas razões para viver. Os negócios iam razoavelmente bem, mas comecei a pensar seriamente em mudar de cidade, ir para o interior, envolver-me com atividades menos desgastantes, o homem sempre quer ir para longe quando precisa se achar. Um dia, num sábado pela manhã, eu fui, sem avisar, até o apartamento de Ana Lucia, levei um ramalhete com flores silvestres, que ela sempre gostara. O porteiro disse meu nome no interfone, houve uma pausa, perguntou meu nome novamente e depois confirmou para o outro lado da linha, eu podia subir. Ela abriu a porta e sorriu, eu sorri também, estendi a mão e ela me abraçou, disse que bom te ver e me convidou para entrar. Seu apartamento era pequeno, duas samambaias penduradas, uma estante com bonequinhos de porcelana, vídeo, som, uma tv pequena, dois sofás de tecido azulado, uma mesa de madeira escura, um conjunto de sininhos em espiral no canto da parede e uma garotinha entrou do quarto para a sala. Esta é Clara, disse Ana Lucia, abraçando a menina que sorria agarrada à sua cintura, não tinha mais que dez anos. Ela pediu que eu me sentasse, disse que adotara Clara, seus pais haviam morrido e não tinha quem cuidasse dela. Havia a casa assistencial, onde ela ficava o dia inteiro, e onde Ana trabalhava, e a noite as duas vinham juntas para casa. A menina tinha algum tipo de deficiência mental, mas não fiquei sabendo de maiores detalhes. Perguntei pelo curso de filosofia e ela, um pouco sem jeito, disse que tinha sido uma pequena mentira, não queria falar sobre Clara pelo telefone. Ela perguntou por que eu estava lacrimejando e eu disse que não havia dormido direito, que sentia os olhos irritados, Clara voltou para o quarto e ficamos os dois na sala. Sentei ao lado de Ana Lucia e peguei em suas mãos, estavam frias, seus olhos estavam úmidos, eu disse que ela podia ter me falado que gostaria de adotar uma criança, que por ela eu seria capaz de ter esse amor, que se ela quisesse nós poderíamos voltar a morar juntos, os três. Ela sorriu, foi até a cozinha e voltou com duas xícaras de café, sentou-se em uma das cadeiras da mesa e, me olhando de um modo muito divertido, disse que o detetive que eu havia contratado para segui-la tinha lhe passado uma cantada. Abaixei a cabeça, senti-me pequeno, ridículo, e ela, como sempre, veio em meu socorro, e ao mesmo tempo disse coisas que até hoje não sei se compreendo bem. Disse que qualquer homem, no meu lugar, tomaria a mesma atitude, que esta é a atitude normal dos homens quando se vêm diante de situações fora do lugar-comum, pensar em traições é sempre mais confortável, visto que, para eles, dentro do seu pequeno mundo, é impossível que uma mulher bonita não seja igualmente ardente, sedenta, fogosa. E que esta é a visão geral das pessoas, inclusive, e principalmente, a visão das mulheres, que se vêm, em muitos casos, obrigadas a fingir prazer para não serem taxadas de frígidas. Disse que simplesmente não gostava de sexo, não via prazer naquilo e que gostaria de ser respeitada pela sua opção de vida, que achava mais importante o seu engrandecimento espiritual, a dedicação a pessoas como Clara, que dependem de amor para sobreviver, do tipo de amor que ela sabia dar. Disse que não abria mão da liberdade de ser o que era, e que gostaria muito que as pessoas a deixassem em paz, que era assim que ela se sentia plenamente feliz. Cinco anos já se passaram. Recolhi-me nesta casa nas montanhas, de onde vejo uma pequena cidade aqui perto. Gasto meu tempo escrevendo coisas que, se não servem para nada, ajudam a purgar a alma. À noite, eu me deito sobre este banco longo de madeira e, de frente para o céu, olho a lua e as estrelas e tento entender. Varias vezes durante o dia eu olho para a porteira lá embaixo, esperando que um dia Ana Lucia volte. Se ela não demorar muito, ainda haverá tempo para envelhecermos juntos.