sábado, 25 de julho de 2015

RATOS NO NEVOEIRO


Ando de um lado para o outro, já percorri esse saguão umas duzentas vezes e ainda não consegui definir o que me incomoda. Meu voo deveria chegar em uma hora, já fiz o check-in e me sinto abandonado, o último homem na face da terra, segurando uma mala pequena, com a terrível sensação de que não saberei dar o próximo passo. Carrego a sina dos tolos que querem mudar o mundo, levo nos ombros as dores de outros, sem saber o que fazer com as minhas e é tudo muito pesado. Entro na livraria e compro uma agenda do Mario Quintana, folheio os dias que virão e procuro me embalar nos versos curtos do homem que viveu em hotéis, e lembrei-me de que também já fiz isto, entrava e saia de hotéis, bebia até altas horas conversando com o barman que me ouvia com a benevolência adquirida na profissão. Mas minha afinidade com o Poeta termina aí, não deixei obra alguma, a não ser folhas rabiscadas sobre o criado-mudo, que eu esperava fossem lidas pela arrumadeira da manhã. 
O tempo não passa, são quase dez horas da manhã, tomo cerveja no bar do piso superior, voos e aterrisagens foram suspensos, baixou um nevoeiro repentino sobre o aeroporto. O garçom atrás do balcão parece não ser de muita conversa, é assim em geral em aeroportos e rodoviárias, tudo muito impessoal, nenhum laço se cria, as pessoas que chegam e vão não serão as mesmas amanhã, todos correndo em grupos no arrastão do tempo. Lá fora, o nevoeiro sobre os aviões parados deixa uma fresta na lateral da pista, por onde se vê edifícios cortados ao meio. Abro a agenda, hoje é 03 de abril e como se fosse uma folhinha do Seicho-no-ie, leio a mensagem do Poeta: 
“Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando os problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar inquietação do mundo! ” 
Vou até próximo a janela e sento em uma das mesas junto a parede de vidro. Em frente, em outra divisão daquela ala, está um grupo de garotos olhando para a pista, têm os rostos colados no vidro, um jeito de frustração pela paralisia trazida pelo nevoeiro. Devem ser meninos das proximidades do aeroporto, vêm ali observar a chegada e a saída dos aviões, suas roupas são de gente pobre, ainda nessa idade talvez não saibam que a parede de vidro é o menor dos obstáculos que os separam daquele mundo. Não quero pensar sobre isto, já deveria estar no alto, no inicio da estrada para outro ponto, os aviões devem estar sendo desviados para outro lugar, peço uma vodca, um casal de executivos senta-se na mesa a minha esquerda. Sinto um certo conforto em saber que somos iguais, se fossem melhores do que eu estariam na sala vip, partilhamos o mesmo degrau social neste momento. 
Ela morreu na tarde do dia 25 de março, faz um ano e pouco que meu mundo desabou. Tinha os olhos negros mais belos da face da terra e relutou em morrer sabendo que me deixaria órfão. Não sofreu como sofrem os portadores das grandes doenças que fazem a riqueza da indústria farmacêutica e a fama e fortuna de médicos especialistas. Também não queria falar disto, mas é impossível não lembrar que tudo começou com uma carta enviada por uma tal Anair Medeiros, uma mulher sem endereço no verso do envelope, e sendo um nome que não me dizia nada, era uma carta anônima. Passei a seguir minha mulher a distância, vigiava seus passos durante todo o dia, o lugar citado na carta era um prédio velho na região da Luz. Passei a usar as armas dos covardes, frases de duplo sentido, ironias prontas para qualquer instante, silêncios prolongados, olhares de desconfiança, risos lacônicos. À noite, quando ela me procurava, e ela procurava sempre, eu virava do lado, tivera um dia cheio, muitos problemas no escritório e outras evasivas mais. Mas não conseguia dormir, passava as noites olhando para o guarda-roupas, decorando as linhas tortuosas do seu revestimento de pinus e o arremate defeituoso junto ao teto. Remoía minhas desconfianças em silêncio, imaginava chegando no momento exato em que o outro estaria sobre ela, em um quarto sujo, de colchão rasgado e sem lençóis, janela estreita de cortinas encardidas, o banheiro sem porta, o vaso sanitário imundo, a ducha Corona velha e quebrada, o caminho ferruginoso da água que vaza do cano e escorre pela parede. Passei a beber mais do que o costume, chegava tarde no escritório, a barba por fazer, saía no meio das reuniões, no meio do expediente, para segui-la e sempre bebia mais um pouco nessas horas. Comia pouco, emagreci, um dia ela me pegou para uma conversa, queria saber o que estava acontecendo comigo, eu disse que nada, apenas um grande turbilhão movendo minha vida, virando tudo do avesso, ela que me deixasse em paz, antes de sair perguntei se ela conhecia uma tal de Anair Medeiros, ela disse que não, e eu disse que ela deveria escolher melhor suas amizades. Foi indo tudo assim, sem esclarecimentos de lado nenhum, o inferno foi se formando e um dia, quando eu estava parado em uma rua suspeita na região da Luz, eu a vi entrando no tal prédio. Ficou lá dentro umas duas horas, pensei em ir atrás, mas não tive coragem, se fosse pego ali não saberia explicar, então esperei. Saiu do mesmo jeito que entrou, apressada, entrou no carro e desapareceu, e eu fui para o escritório. 
A carta de demissão estava em cima da mesa, não me despedi de ninguém e fui para o litoral, parei no Guarujá, tirei os sapatos e fui andando pela areia, um navio cargueiro equilibrava-se na linha distante, um sol tímido entrecortado de nuvens ralas e velozes, encostei numa barraca e pedi uma caipirinha. Por um instante eu pensei que o mundo estivesse se movendo em câmera lenta, o homem passava a faca firme sobre o limão e as fatias iam caindo lentamente, quando uma deitava sobre a tabua a outra caia sobre ela, devagar, e a faca reluzia e o homem sorria, olhando para mim e para a faca. Virei as costas de repente e respirei fundo, tentando puxar do mar alguma coisa que interrompesse aqueles pensamentos. 
Cheguei em casa era madrugada, nem sabia como havia feito o trajeto de subida da serra, a vista estava turva, eu havia bebido além da conta, as luzes dos postes do estacionamento se multiplicavam e se entrelaçavam como argolas, eu reclinei o banco e dormi. Acordei com o sol batendo em meu rosto e ela batendo no vidro do carro. Entramos no apartamento e ela perguntou por onde eu tinha andado, disse que não sabia, que não lembrava de nada, bebedeira com os amigos do escritório, ela sabia que era mentira, tinha ligado para um deles a noite a minha procura e já sabia da minha demissão. 
Uma gargalhada na mesa vizinha me traz de volta ao aeroporto e o nevoeiro agora encobre os aviões na pista. Tiro minha passagem do bolso e olho o destino e não sei o que vou fazer por lá, Nova Zelândia, de lá só sei das ovelhas e das montanhas, mas é um lugar distante e é para lá que vou, se esse avião um dia chegar. Tenho medo dos ratos que estão do outro lado do nevoeiro, todas as noites, quando um silêncio inexplicável cala o mundo, eu os ouço gritando nos subterrâneos da cidade, vejo-os me arrastando pelos bueiros e hoje eles são ratos de névoa. 
Ela ficou estática no meio do apartamento, esperando explicação, eu entrei para o banheiro. Depois do banho saí sem dizer qualquer palavra, ela estava trancada no quarto. Bebi até altas horas, entrei nos puteiros da região da Brigadeiro, comi umas quatro ou cinco putas, em meio a cerveja e vodca e conhaque e cigarros, eu parecia ter entrado em outro mundo ou era em outro mundo que eu queria entrar. Na madrugada fui até o prédio na Luz e parei o carro em frente, algumas putas estavam na porta. Desci e subi as escadas com uma delas, entrei em um quarto imundo, o colchão estava rasgado, virei as costas e desci as escadas correndo, quase caindo no fim. Entrei no apartamento na madrugada, as luzes estavam apagadas, abri com cuidado a porta do quarto e vi na penumbra seu corpo adormecido, virado para o canto. Voltei para a sala, peguei uma garrafa de uísque na prateleira da estante e fui bebendo, ouvindo os primeiros sons do dia chegarem pela janela. 
Acordei assustado com sol batendo sobre as minhas pernas, havia adormecido no sofá, o relógio no videocassete marcava dez horas, eu olhei a porta do quarto, continuava trancada. Fui até o banheiro, arreganhei os dentes para o espelho, tinha olheiras visíveis, o cabelo desarrumado. Entrei no banho, sob o jato quente ouvi o telefone tocando, e tocou até que desistissem, um temor repentino cresceu na boca do estômago. Desliguei o chuveiro apressado, enrolei a toalha no corpo e sai, deixando uma trilha molhada pelo corredor. Abri lentamente a porta do quarto, ela estava deitada na mesma posição, dei a volta na cama e fiquei apavorado. No chão, junto ao criado mudo, estava um copo de uísque e do lado um vidro de comprimidos, seu braço direito pendia a alguns centímetros do piso de vinil. 
No hospital, na região do Jabaquara, eu olhava seu rosto pálido, vigiava seu sono profundo já de alguns dias, havia poucas chances. Um dia ela abriu os olhos e me sorriu, eu perguntei por que, ela manteve o sorriso, eu perguntei se ela conhecia Anair Medeiros, ela fechou os olhos, de novo e para sempre. 
Olho a passagem sobre a mesa e olho a janela e além dela não há mais nada, o nevoeiro engoliu a paisagem. Desço para o saguão e me avisam que um ônibus irá nos levar para o outro aeroporto, tenho duvidas dessa minha atitude, penso em rasgar a passagem. Entro no ônibus e ele vai cortando a cidade. Sinto-me cansado, há tempo para um cochilo, mas refreio a ideia, o nevoeiro ainda está lá fora e eu sei o que há no meio dele.



sexta-feira, 24 de julho de 2015

MÉTODOS E CONVICÇÕES

Meu nome é Sardinha. Antônio Gomes de Sá Sardinha. Sou prefeito. Não, não o prefeito da cidade toda, ainda não. Tenho em minhas mãos uma das Regionais, algo conquistado com muita luta, tive que dar muito sangue, entrei em conchavos, fiz muita bajulação com as pessoas certas, é como dizem, é preciso estar no lugar certo na hora certa.
Olho esta cidade com muito orgulho e principalmente o pedaço dela que me pertence. Tenho de dividir um pouco, você entende o que quero dizer, sabe como é, os vereadores, por trás deles os fiscais, gente disposta a dar porrada, tudo necessário, a cidade é difícil, se não estiver todo mundo amarradinho não funciona. Aprendi com gente graúda, vi como é que se faz, quero dizer, a maneira como se faz.
A vida está difícil, ouço esta lamuria o dia todo, muita gente preguiçosa pelas ruas, muito vagabundo deitado pelas calçadas, muitos pedintes nos faróis, não sei de onde aparece essa gente, a noite então é um inferno.
À noite, sim. Nós temos um plano, sabemos o que o cidadão respeitável, o que paga impostos, quer. Ele não se interessa por métodos, quero dizer, quando a coisa estoura ele pode até se indignar, faz jeito de democrata, aquela história de ir e vir, direitos humanos, mas é uma dorzinha que passa rápido, se vê bons resultados ele sossega, não se pode carregar o mundo nas costas.
No fundo eu tenho muita pena dessa gente, sou cristão, vou à missa todos os domingos, confesso, comungo, doações faço pouco, se a gente solta a igreja acomoda, eles têm que fazer mais, não quero meu dinheiro sendo usado em politica, Cristo fundou uma igreja não um partido.
São pessoas de todos os lugares, o País é grande, e por ser tão grande poderiam procurar outro paradeiro, as oportunidades estão em todos os lugares, mas não, preferem São Paulo, pensam que por estarem na terra do trabalho não precisam trabalhar, não sei se você me entende.
O plano é simples. Agora é noite, bem tarde na verdade, e estou na praça da Sé. Há mendigos espalhados por todos os cantos, nas escadarias da igreja, nas marquises das lojas, em volta do metrô, uma nojeira. Daqui a pouco chegam os caminhões, são só dois. Ainda estamos no começo e se o negócio der certo a gente pode pôr mais veículos, tem sempre particulares dispostos a colaborar, serve qualquer coisa, ônibus, até mesmo vans já ofereceram, não precisamos nem usar verba da prefeitura. É como eu disse, a nossa reciprocidade é o sigilo.
Está uma noite sem lua, tem até aquele friozinho gostoso que é característico dessa época, seria melhor estar em casa com meus filhos, mas é um trabalho que precisa de comando, tem gente que pode achar que não é muito certo, mas estou convicto, outro dia mesmo eu li algo sobre a ética da convicção, parece que era alguma coisa assim.
Já fizemos isto algumas noites, ainda não dá para notar resultados, sai dois vem três. Mas uma hora a fábrica não vai mais dar conta.
Lá estão eles, os caminhões estão encostando, vamos à nossa função social, vamos pegando um grupinho aqui, outro ali, alguns têm dificuldade de acordar, deve ser por isto que morrem queimados facilmente. A maioria cheira a álcool, também à urina e fezes, dias sem tomar banho, é preciso ter estômago, o cidadão em casa não imagina o que fazemos por ele. São mulheres, crianças, a maioria de cor, não digo negro porque podem achar que sou racista, e isto eu não sou, mas deveriam estar felizes por ser maioria em alguma coisa.
Dizemos que somos do departamento social da prefeitura, não usamos qualquer uniforme, não queremos fazer propaganda, a verdadeira solidariedade é anônima. Quando entram no caminhão parece que estão felizes, acho que exagero, parecem ter esperança, é o que aprendem desde que nascem, e por conta desse sentimento não fazem mais nada, sempre à espera que lhes deem de tudo. As crianças ficam grudadas nos adultos, devem estar acostumados uns com o cheiro dos outros, talvez sintam frio, carregam seus cobertores imundos, mendigo antigamente se cobria com jornal.
Temos um médico que nos acompanha, na verdade não é medico, mas sabe tirar uma pressão, e sabe dar injeções, está certo que do jeito que ele aplica deve doer, mas é uma dor que logo eles descansam dela, é disto que precisamos.
O caminhão vai andando, vou na cabine de onde observo tudo, gosto de ver como nosso medico vai aplicando as injeções, é vitamina ele diz, tudo muito calmo, é um santo.
Nem bem a gente pega a Anchieta e eles já estão dormindo, nem percebem o trajeto, não sabem se estão longe ou perto, é gente acostumada a estar cada hora num lugar, tanto faz.
Estamos atravessando a ponte do Riacho Grande, lá atrás está tudo calmo, nosso medico de vez em quando dá uns chutinhos em alguns, tudo muito delicado, para ver se tem alguém acordado, os outros dois ajudantes parecem cochilar lá encostados na porta de saída, não são bons vigias, mas são mais para o trabalho pesado, é incrível o peso que essa gente tem, não comem nada, deve ser a sujeira.
Hoje vamos para a esquerda, procuramos variar de lugar, a represa é grande, não há necessidade de correr riscos, sempre tem algum pescador noturno por aí, gente que mais bebe do que pesca, que está sempre dizendo que viu alguma coisa estranha. É bom prevenir.
O caminhão sai do asfalto e desce um pedacinho de terra, o outro vem logo atrás, encostamos na beira da represa, um dos caminhões traz sempre um bote inflável.
É sempre assim, paramos em algum lugar aonde não haja casas, à uma boa distância da estrada, estamos na margem, um pouco mais pisamos na água.
Sabe que aquele friozinho parece que sumiu? Sinto um calor no rosto, você sabe do que eu falo, parece assim quando a gente vai encontrar com a namorada, ou então quando vamos fazer aquela viagem que estava programada há muito tempo, me sinto como uma criança quando chega na Disney, você já foi à Disney, não foi?
A injeçãozinha do doutor funciona, vamos colocando de três em três amontoados no barco e ninguém acorda, quando é criança dá para por quatro, as vezes até cinco, são sempre miúdos, corpo mirradinho.
Nessa viagem agora eu vou junto, colocamos só dois adultos e uma criança, precaução, temos que contar eu e o homem que vai remar.
Procuramos ir mais para o fundo, quanto mais longe melhor, mas não paramos em um lugar só, mais espalhado é melhor.
O ajudante tira o remo da água e acomoda em um dos lados dentro barco, o remo resvala na cabeça da criança, parece que sentiu a água fria, mas foi só um espasmo.
Vamos deixar a criança por ultimo, pegamos um dos adultos e vamos empurrando o corpo devagarinho para fora do barco, sem fazer muito barulho, e num instante ele desaparece nas águas escuras. Não sei se a pessoa chega a acordar depois que afunda, mas é melhor que não, deve ser desesperador acordar com um monte de água por cima.
Agora falta só a menina, tem a cara suja, mas o rosto até que não é feio, os cabelos loirinhos, o mundo as vezes é injusto, tivesse nascido em outro berço até que podia ter uma vida decente. O ajudante vai escorregando os pés dela para a água, o corpo já desceu a metade, vai soltá-la e ela abre os olhos e me olha, seu olhar me pede alguma coisa, ia mexendo os lábios, mas não deu tempo, o corpo afundou todo na água.
A madrugada vai alta quando chego em casa, um lugar confortável aqui pelos lados da Castelo Branco. As crianças estão dormindo perto da lareira, o frio de hoje justifica. Mas não os acordo, vou até o barzinho e pego um uísque, é preciso relaxar um pouco. Sento na cadeira de descanso do lado da lareira, poucos passos a minha frente vejo o rosto de minha filha dormindo, vejo a mecha dos seus cabelos loirinhos caídos no rosto, ela abre os olhos e me olha e sinto um leve tremor na mão que segura o uísque. Mas logo passa.