Ando
de um lado para o outro, já percorri esse saguão umas duzentas vezes e ainda
não consegui definir o que me incomoda. Meu voo deveria chegar em uma hora, já
fiz o check-in e me sinto abandonado, o último homem na face da terra,
segurando uma mala pequena, com a terrível sensação de que não saberei dar o
próximo passo. Carrego a sina dos tolos que querem mudar o mundo, levo nos
ombros as dores de outros, sem saber o que fazer com as minhas e é tudo muito
pesado. Entro na livraria e compro uma agenda do Mario Quintana, folheio os
dias que virão e procuro me embalar nos versos curtos do homem que viveu em
hotéis, e lembrei-me de que também já fiz isto, entrava e saia de hotéis, bebia
até altas horas conversando com o barman que me ouvia com a benevolência
adquirida na profissão. Mas minha afinidade com o Poeta termina aí, não deixei
obra alguma, a não ser folhas rabiscadas sobre o criado-mudo, que eu esperava
fossem lidas pela arrumadeira da manhã.
O
tempo não passa, são quase dez horas da manhã, tomo cerveja no bar do piso
superior, voos e aterrisagens foram suspensos, baixou um nevoeiro repentino
sobre o aeroporto. O garçom atrás do balcão parece não ser de muita conversa, é
assim em geral em aeroportos e rodoviárias, tudo muito impessoal, nenhum laço
se cria, as pessoas que chegam e vão não serão as mesmas amanhã, todos correndo
em grupos no arrastão do tempo. Lá fora, o nevoeiro sobre os aviões parados
deixa uma fresta na lateral da pista, por onde se vê edifícios cortados ao
meio. Abro a agenda, hoje é 03 de abril e como se fosse uma folhinha do
Seicho-no-ie, leio a mensagem do Poeta:
“Olho em redor
do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após
caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que
está somente afogando os problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a
milenar inquietação do mundo! ”
Vou
até próximo a janela e sento em uma das mesas junto a parede de vidro. Em
frente, em outra divisão daquela ala, está um grupo de garotos olhando para a
pista, têm os rostos colados no vidro, um jeito de frustração pela paralisia
trazida pelo nevoeiro. Devem ser meninos das proximidades do aeroporto, vêm ali
observar a chegada e a saída dos aviões, suas roupas são de gente pobre, ainda
nessa idade talvez não saibam que a parede de vidro é o menor dos obstáculos
que os separam daquele mundo. Não quero pensar sobre isto, já deveria estar no
alto, no inicio da estrada para outro ponto, os aviões devem estar sendo
desviados para outro lugar, peço uma vodca, um casal de executivos senta-se na
mesa a minha esquerda. Sinto um certo conforto em saber que somos iguais, se
fossem melhores do que eu estariam na sala vip, partilhamos o mesmo degrau
social neste momento.
Ela morreu na tarde
do dia 25 de março, faz um ano e pouco que meu mundo desabou. Tinha os olhos
negros mais belos da face da terra e relutou em morrer sabendo que me deixaria
órfão. Não sofreu como sofrem os portadores das grandes doenças que fazem a
riqueza da indústria farmacêutica e a fama e fortuna de médicos especialistas.
Também não queria falar disto, mas é impossível não lembrar que tudo começou
com uma carta enviada por uma tal Anair Medeiros, uma mulher sem endereço no
verso do envelope, e sendo um nome que não me dizia nada, era uma carta
anônima. Passei a seguir minha mulher a distância, vigiava seus passos durante
todo o dia, o lugar citado na carta era um prédio velho na região da Luz.
Passei a usar as armas dos covardes, frases de duplo sentido, ironias prontas
para qualquer instante, silêncios prolongados, olhares de desconfiança, risos
lacônicos. À noite, quando ela me procurava, e ela procurava sempre, eu virava
do lado, tivera um dia cheio, muitos problemas no escritório e outras evasivas
mais. Mas não conseguia dormir, passava as noites olhando para o guarda-roupas,
decorando as linhas tortuosas do seu revestimento de pinus e o arremate
defeituoso junto ao teto. Remoía minhas desconfianças em silêncio, imaginava
chegando no momento exato em que o outro estaria sobre ela, em um quarto sujo,
de colchão rasgado e sem lençóis, janela estreita de cortinas encardidas, o
banheiro sem porta, o vaso sanitário imundo, a ducha Corona velha e quebrada, o
caminho ferruginoso da água que vaza do cano e escorre pela parede. Passei a
beber mais do que o costume, chegava tarde no escritório, a barba por fazer,
saía no meio das reuniões, no meio do expediente, para segui-la e sempre bebia
mais um pouco nessas horas. Comia pouco, emagreci, um dia ela me pegou para uma
conversa, queria saber o que estava acontecendo comigo, eu disse que nada,
apenas um grande turbilhão movendo minha vida, virando tudo do avesso, ela que
me deixasse em paz, antes de sair perguntei se ela conhecia uma tal de Anair
Medeiros, ela disse que não, e eu disse que ela deveria escolher melhor suas
amizades. Foi indo tudo assim, sem esclarecimentos de lado nenhum, o inferno
foi se formando e um dia, quando eu estava parado em uma rua suspeita na região
da Luz, eu a vi entrando no tal prédio. Ficou lá dentro umas duas horas, pensei
em ir atrás, mas não tive coragem, se fosse pego ali não saberia explicar,
então esperei. Saiu do mesmo jeito que entrou, apressada, entrou no carro e
desapareceu, e eu fui para o escritório.
A carta de demissão estava em cima da mesa, não me despedi de ninguém e
fui para o litoral, parei no Guarujá, tirei os sapatos e fui andando pela
areia, um navio cargueiro equilibrava-se na linha distante, um sol tímido
entrecortado de nuvens ralas e velozes, encostei numa barraca e pedi uma
caipirinha. Por um instante eu pensei que o mundo estivesse se movendo em
câmera lenta, o homem passava a faca firme sobre o limão e as fatias iam caindo
lentamente, quando uma deitava sobre a tabua a outra caia sobre ela, devagar, e
a faca reluzia e o homem sorria, olhando para mim e para a faca. Virei as
costas de repente e respirei fundo, tentando puxar do mar alguma coisa que
interrompesse aqueles pensamentos.
Cheguei em casa era madrugada, nem sabia como havia feito o trajeto de
subida da serra, a vista estava turva, eu havia bebido além da conta, as luzes dos
postes do estacionamento se multiplicavam e se entrelaçavam como argolas, eu
reclinei o banco e dormi. Acordei com o sol batendo em meu rosto e ela batendo
no vidro do carro. Entramos no apartamento e ela perguntou por onde eu tinha
andado, disse que não sabia, que não lembrava de nada, bebedeira com os amigos
do escritório, ela sabia que era mentira, tinha ligado para um deles a noite a
minha procura e já sabia da minha demissão.
Uma
gargalhada na mesa vizinha me traz de volta ao aeroporto e o nevoeiro agora
encobre os aviões na pista. Tiro minha passagem do bolso e olho o destino e não
sei o que vou fazer por lá, Nova Zelândia, de lá só sei das ovelhas e das
montanhas, mas é um lugar distante e é para lá que vou, se esse avião um dia
chegar. Tenho medo dos ratos que estão do outro lado do nevoeiro, todas as
noites, quando um silêncio inexplicável cala o mundo, eu os ouço gritando nos
subterrâneos da cidade, vejo-os me arrastando pelos bueiros e hoje eles são
ratos de névoa.
Ela
ficou estática no meio do apartamento, esperando explicação, eu entrei para o
banheiro. Depois do banho saí sem dizer qualquer palavra, ela estava trancada
no quarto. Bebi até altas horas, entrei nos puteiros da região da Brigadeiro,
comi umas quatro ou cinco putas, em meio a cerveja e vodca e conhaque e
cigarros, eu parecia ter entrado em outro mundo ou era em outro mundo que eu
queria entrar. Na madrugada fui até o prédio na Luz e parei o carro em frente,
algumas putas estavam na porta. Desci e subi as escadas com uma delas, entrei
em um quarto imundo, o colchão estava rasgado, virei as costas e desci as
escadas correndo, quase caindo no fim. Entrei no apartamento na madrugada, as
luzes estavam apagadas, abri com cuidado a porta do quarto e vi na penumbra seu
corpo adormecido, virado para o canto. Voltei para a sala, peguei uma garrafa
de uísque na prateleira da estante e fui bebendo, ouvindo os primeiros sons do
dia chegarem pela janela.
Acordei assustado com sol batendo sobre as minhas pernas, havia
adormecido no sofá, o relógio no videocassete marcava dez horas, eu olhei a
porta do quarto, continuava trancada. Fui até o banheiro, arreganhei os dentes
para o espelho, tinha olheiras visíveis, o cabelo desarrumado. Entrei no banho,
sob o jato quente ouvi o telefone tocando, e tocou até que desistissem, um
temor repentino cresceu na boca do estômago. Desliguei o chuveiro apressado,
enrolei a toalha no corpo e sai, deixando uma trilha molhada pelo corredor.
Abri lentamente a porta do quarto, ela estava deitada na mesma posição, dei a
volta na cama e fiquei apavorado. No chão, junto ao criado mudo, estava um copo
de uísque e do lado um vidro de comprimidos, seu braço direito pendia a alguns
centímetros do piso de vinil.
No
hospital, na região do Jabaquara, eu olhava seu rosto pálido, vigiava seu sono
profundo já de alguns dias, havia poucas chances. Um dia ela abriu os olhos e
me sorriu, eu perguntei por que, ela manteve o sorriso, eu perguntei se ela
conhecia Anair Medeiros, ela fechou os olhos, de novo e para sempre.
Olho a passagem sobre a mesa e olho a janela e além dela não há mais
nada, o nevoeiro engoliu a paisagem. Desço para o saguão e me avisam que um
ônibus irá nos levar para o outro aeroporto, tenho duvidas dessa minha atitude,
penso em rasgar a passagem. Entro no ônibus e ele vai cortando a cidade.
Sinto-me cansado, há tempo para um cochilo, mas refreio a ideia, o nevoeiro
ainda está lá fora e eu sei o que há no meio dele.