sábado, 18 de setembro de 2010

DISTRAÇÕES.

Eu dobro o guardanapo enquanto ouço as últimas grandes verdades. Me consolo com a minha ignorância, na esperança de que tudo mude um dia. Rezo com minha fé pisoteada pelas andanças e incertezas. Faço um brinquedo de balançar com o guardanapo e observo os rostos ao redor, as palavras em atropelo, quase gritos, a morte dos argumentos. Lembro-me de nossa estrada, das nossas conversas silenciosas, a casa que seria construída, a árvore que seria plantada, o livro que seria escrito. Acreditávamos e isto bastava. Acostumei-me ao silêncio e ao aprendizado de que o melhor nunca precisa ser dito. Tomo um gole de café e me lembro de um homem arrastando os chinelos pela casa na madrugada. Eu sabia a sequência: primeiro os chinelos, depois o barulho de panelas e finalmente o cheiro de café. Passo o pensamento para o meu brinquedo de papel sobre a mesa agora abarrotada de restos. Entram finalmente as palavras lentas e um pouco de quietude. É como as águas acalmando, o vento morno ao entardecer e aquela sensação de que pouco ou quase nada mais se precisa para viver. E me renovo nas distrações que o silêncio me ensinou a construir.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

UFA! ENTÃO A DIVAGAÇÃO NÃO É DOENÇA.

Para aqueles que como eu e a maioria dos escritores tentam entender a vida através da divagação ou, como dizem alguns, parecem viver em um mundo paralelo, é sempre bom saber que a ciência nos defende e nos dá razão:

CONTARDO CALLIGARIS - (Folha de S. Paulo - 09/09/10)

Leia com atenção - ou não

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Novas pesquisas valorizam a divagação e o devaneio, ambos hoje considerados indispensáveis para pensar
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A SEXTA temporada de "House" está acabando, no Universal Channel, e a sétima é iminente. Quem segue a série sabe que, frequentemente, o achado decisivo do médico House acontece, digamos, por distração.
Durante uma boa metade de cada episódio, House testa todo tipo de hipótese diagnóstica, enquanto o paciente sobrevive a exames e tratamentos inúteis.
Mesmo durante essa primeira fase, House não avança graças a sei lá qual capacidade focada de examinar e interpretar os sintomas do paciente. Ao contrário, ele funciona direito só numa espécie de jogo em que os membros de sua equipe, meio que no chute, levantam hipóteses que ele derruba.
Essa componente lúdica e divagadora de seu funcionamento aparece em outras circunstâncias: o paciente está morrendo e House (para pensar melhor ou para não pensar?) toca guitarra elétrica, ironiza a vida sentimental de um amigo, brinca com uma bola.
Reconhecemos facilmente a hora do diagnóstico final e correto porque 1) faltam 15 minutos ao fim do episódio, 2) repetidamente, esse diagnóstico surge quando House se perde num pensamento que não tem nada a ver com o paciente e sua doença.
Imagine, por exemplo, que o paciente esteja morrendo ou prestes a ser operado por causa de um diagnóstico errado. House entra num bar para assistir a um jogo de futebol. Vergonha: ele deveria estar preocupado com seu paciente, não é? Mas eis que um zagueiro faz um gol contra, e a distração desse momento-futebol permite que House se lembre de que, às vezes, o organismo também faz gol contra: heureca, doença autoimune!
Para os psicanalistas, essa situação é familiar. Freud recomendava que os pacientes fossem escutados com "atenção flutuante". Ele não sugeria que, durante a sessão, os analistas lessem o jornal ou cuidassem de seus e-mails.
Mas acontece que interpretar significa juntar dois pensamentos que, à primeira vista, não parecem ter muito a ver um com o outro. Para que isso aconteça, é preciso manter aberta a porta da divagação, de modo que pensamentos estrangeiros ao contexto não sejam barrados por princípio.
O diagnóstico médico e a escuta psicanalítica são processos que exigem um exercício criativo, se não inventivo. Neles, pode ser bem-vindo, AO MESMO TEMPO, divagar (ou mesmo devanear) e seguir os caminhos focados do pensamento que executa uma tarefa.
Nos anos 60, o metilfenidato (um estimulante) começou a ser usado para tratar o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) em crianças em idade escolar. De 60 a 90, o diagnóstico de TDAH aumentou brutalmente: nos EUA, por exemplo, de 12 crianças em cada mil nos anos 70, chegou-se a 34 em cada mil nos anos 90.
Seja qual for a realidade neurológica e psicológica do TDAH e seja qual for a eficácia do seu tratamento com metilfenidato, é difícil não constatar que a epidemia tem também uma explicação cultural.
Sua história começa logo nos anos 60, uma época em que divagar (perder-se no pensamento e pelo mundo) era um valor positivo da contracultura. Desde então, voltamos a prezar o olhar focado do predador. O ápice dessa reação (e do diagnóstico de TDAH) foi a religião do sucesso dos anos 90.
Ora, começam a aparecer pesquisas que revalorizam a divagação e o devaneio. "Descobrimos" o que já sabíamos: há uma desatenção sem a qual não se consegue pensar nada que valha a pena.
Usando apenas o dito "controle executivo" focado, conseguiremos cumprir tarefas adequadamente (mesmo assim, à condição que não haja imprevistos), mas não inventaremos nada. A própria invenção científica (não só a criação artística) pede um uso simultâneo de controle executivo e divagação.
Duas pesquisas, para quem quiser ler (com atenção, claro): www.migre.me/1aZZu e www.migre.me/1b57h.
A segunda documenta (por ressonância magnética funcional) a cooperação possível de pensamento focado e devaneio (que ainda são, por muitos, considerados como atividades exclusivas uma da outra).
À luz dessas pesquisas, seria bom reavaliar nossa hipervalorização da atenção focada e, sobretudo, nossa medicalização sistemática de crianças que, às vezes, com toda razão, gostam de sonhar de olhos abertos.

ccalligari@uol.com.br