domingo, 3 de março de 2013

CLICHÊS

“Tem chovido muito nos últimos dias”. A frase, um chavão de janeiro, passou de raspão no ar contemplativo de Daniela. Ela voltou-se, me olhou com desprezo pela obviedade da colocação e voltou ao seu mundo, isolada de mim. Eu coloquei o café morno sobre o parapeito da janela e olhei a cidade. Lembrei-me de verde, um rio vazando pelas baixadas, casas apartadas pelas estradas de lama, a chuva pesada na contraluz que atravessa uma floresta de eucaliptos. “Deus não economiza em bondades”, eu disse. “Desde que Ele vá com a sua cara”, ela respondeu. Atravessamos aquele dia entre pequenas ofensas, farpas que se escondem nas dobras das relações intensas. Saí embaixo de chuva na virada da noite, para um pequeno hotel no centro da cidade. Ela ficou se apossando da casa e de tudo que construímos ao longo de quase 30 anos. Não carrego culpas além daquelas herdadas da minha formação católica. São para a vida toda, não preciso de outras. Faço mais um x na parede, calendário de presidiário, e sigo por qualquer campo isolado que possa alcançar por um tempo, até a calmaria, até o próximo olhar, até a próxima construção de uma história. Velas apagadas, barcos a deriva e um certo desencanto que rouba as cores de tudo que nos rodeia. Até que a chama de um isqueiro, um vento norte e um sorriso desconcertante traga a vida de volta ao eixo. Final e recomeço. Clichês.