terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

De um romance em construção.

É um rio vagaroso de não mais de vinte metros de largura, desses em que só se percebe a correnteza pelo movimento dos arbustos nas margens. Leva uma lua cheia e branca em seu meio, a noite dobrando para a segunda metade. Um velho de andar arrastado vara as moitas de capituva e se aproxima da margem, quando uma movimentação do outro lado chama sua atenção. Um cão de três patas surge sobre o barranco e para, num equilíbrio estável e improvável. Seus olhos se encontram. O velho, absorto na estranheza daquela figura, por um instante se desvia do que o trás ali. Mas um gemido de dentro das águas o desperta. Ele se agarra nos arbustos e desce o barranco até a beira. Ajoelha-se e dobra o corpo, como se tentasse enxergar dentro do rio. Uma força brutal, vinda de não se sabe onde, puxa seu pescoço pra dentro da água e ali o mantem sem que ele consiga se soltar. Ele se debate desesperado. Sob as águas, mãos e rostos aflitos vão surgindo e se aproximando. No extremo de suas forças, o velho consegue se soltar e cai de costas sobre os arbustos. Na outra margem, o cão de três patas permanece impassível.

Amadeu acorda assustado, seu rosto está coberto de suor. Alguns filetes de luz entram da rua pelos vãos da veneziana e riscam o guarda-roupa em frente à cama. Com alguma dificuldade, ele se senta. Do criado-mudo ao lado ele pega o maço de cigarros e acende um, a luz do isqueiro ilumina um crucifixo na parede sobre a cama. Latidos e barulhos de carros chegam das ruas próximas. “Todo uivo vem de longe”, pensa. Trêmulo, ele se levanta e sai.
Atravessa a sala no escuro e acende luz ao entrar no banheiro. Mantem a cabeça abaixada por um instante para recuperar-se do choque da claridade. Sente a cabeça pesada, a ressaca grudando as paredes da garganta.
Ele olha-se no espelho, brevemente. O rosto maltratado aparenta 60 anos. Tem menos. “A idade é uma chacina”, pensa. Mas não sente mais os remorsos de antigamente, quando nesta hora, com os efeitos dos excessos da noite anterior, repassava as tragédias de uma vida permeada de enganos e fracassos. Hoje é um homem seco por dentro, como gosta de pensar, embora seja apenas uma estratégia de sobrevivência a mais. Apanha a escova de dente. Na parede do corredor há uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. O resto de luz do banheiro revela um pouco da cozinha logo a seguir: Um fogão pequeno, a pia vazia, uma mesa de duas cadeiras, um armário estreito e um refrigerador já meio antigo. O barulho da costumeira ânsia de vômito enquanto escova os dentes se espalha pela casa. Cospe e enxagua a boca. Em seguida, o barulho do chuveiro. Na sala, a claridade do dia vem entrando por debaixo da porta.
Pouco tempo depois, Amadeu deixa casa. “Por que um cão de três patas?”, ele pensa.