Meu nome é Sardinha. Antônio Gomes de
Sá Sardinha. Sou prefeito. Não, não o prefeito da cidade toda, ainda não. Tenho
em minhas mãos uma das Regionais, algo conquistado com muita luta, tive que dar
muito sangue, entrei em conchavos, fiz muita bajulação com as pessoas certas, é
como dizem, é preciso estar no lugar certo na hora certa.
Olho esta cidade com muito orgulho e
principalmente o pedaço dela que me pertence. Tenho de dividir um pouco, você
entende o que quero dizer, sabe como é, os vereadores, por trás deles os
fiscais, gente disposta a dar porrada, tudo necessário, a cidade é difícil, se
não estiver todo mundo amarradinho não funciona. Aprendi com gente graúda, vi
como é que se faz, quero dizer, a maneira como se faz.
A vida está difícil, ouço esta lamuria
o dia todo, muita gente preguiçosa pelas ruas, muito vagabundo deitado pelas
calçadas, muitos pedintes nos faróis, não sei de onde aparece essa gente, a
noite então é um inferno.
À noite, sim. Nós temos um plano,
sabemos o que o cidadão respeitável, o que paga impostos, quer. Ele não se
interessa por métodos, quero dizer, quando a coisa estoura ele pode até se
indignar, faz jeito de democrata, aquela história de ir e vir, direitos
humanos, mas é uma dorzinha que passa rápido, se vê bons resultados ele
sossega, não se pode carregar o mundo nas costas.
No fundo eu tenho muita pena dessa
gente, sou cristão, vou à missa todos os domingos, confesso, comungo, doações
faço pouco, se a gente solta a igreja acomoda, eles têm que fazer mais, não
quero meu dinheiro sendo usado em politica, Cristo fundou uma igreja não um
partido.
São pessoas de todos os lugares, o País
é grande, e por ser tão grande poderiam procurar outro paradeiro, as
oportunidades estão em todos os lugares, mas não, preferem São Paulo, pensam
que por estarem na terra do trabalho não precisam trabalhar, não sei se você me
entende.
O plano é simples. Agora é noite, bem
tarde na verdade, e estou na praça da Sé. Há mendigos espalhados por todos os
cantos, nas escadarias da igreja, nas marquises das lojas, em volta do metrô,
uma nojeira. Daqui a pouco chegam os caminhões, são só dois. Ainda estamos no
começo e se o negócio der certo a gente pode pôr mais veículos, tem sempre
particulares dispostos a colaborar, serve qualquer coisa, ônibus, até mesmo
vans já ofereceram, não precisamos nem usar verba da prefeitura. É como eu
disse, a nossa reciprocidade é o sigilo.
Está uma noite sem lua, tem até aquele
friozinho gostoso que é característico dessa época, seria melhor estar em casa com
meus filhos, mas é um trabalho que precisa de comando, tem gente que pode achar
que não é muito certo, mas estou convicto, outro dia mesmo eu li algo sobre a
ética da convicção, parece que era alguma coisa assim.
Já fizemos isto algumas noites, ainda não
dá para notar resultados, sai dois vem três. Mas uma hora a fábrica não vai
mais dar conta.
Lá estão eles, os caminhões estão
encostando, vamos à nossa função social, vamos pegando um grupinho aqui, outro ali,
alguns têm dificuldade de acordar, deve ser por isto que morrem queimados
facilmente. A maioria cheira a álcool, também à urina e fezes, dias sem tomar
banho, é preciso ter estômago, o cidadão em casa não imagina o que fazemos por
ele. São mulheres, crianças, a maioria de cor, não digo negro porque podem
achar que sou racista, e isto eu não sou, mas deveriam estar felizes por ser
maioria em alguma coisa.
Dizemos que somos do departamento
social da prefeitura, não usamos qualquer uniforme, não queremos fazer
propaganda, a verdadeira solidariedade é anônima. Quando entram no caminhão
parece que estão felizes, acho que exagero, parecem ter esperança, é o que
aprendem desde que nascem, e por conta desse sentimento não fazem mais nada,
sempre à espera que lhes deem de tudo. As crianças ficam grudadas nos adultos,
devem estar acostumados uns com o cheiro dos outros, talvez sintam frio,
carregam seus cobertores imundos, mendigo antigamente se cobria com jornal.
Temos um médico que nos acompanha, na
verdade não é medico, mas sabe tirar uma pressão, e sabe dar injeções, está
certo que do jeito que ele aplica deve doer, mas é uma dor que logo eles
descansam dela, é disto que precisamos.
O caminhão vai andando, vou na cabine
de onde observo tudo, gosto de ver como nosso medico vai aplicando as injeções,
é vitamina ele diz, tudo muito calmo, é um santo.
Nem bem a gente pega a Anchieta e eles
já estão dormindo, nem percebem o trajeto, não sabem se estão longe ou perto, é
gente acostumada a estar cada hora num lugar, tanto faz.
Estamos atravessando a ponte do Riacho
Grande, lá atrás está tudo calmo, nosso medico de vez em quando dá uns
chutinhos em alguns, tudo muito delicado, para ver se tem alguém acordado, os
outros dois ajudantes parecem cochilar lá encostados na porta de saída, não são
bons vigias, mas são mais para o trabalho pesado, é incrível o peso que essa
gente tem, não comem nada, deve ser a sujeira.
Hoje vamos para a esquerda, procuramos
variar de lugar, a represa é grande, não há necessidade de correr riscos,
sempre tem algum pescador noturno por aí, gente que mais bebe do que pesca, que
está sempre dizendo que viu alguma coisa estranha. É bom prevenir.
O caminhão sai do asfalto e desce um
pedacinho de terra, o outro vem logo atrás, encostamos na beira da represa, um
dos caminhões traz sempre um bote inflável.
É sempre assim, paramos em algum lugar
aonde não haja casas, à uma boa distância da estrada, estamos na margem, um
pouco mais pisamos na água.
Sabe que aquele friozinho parece que
sumiu? Sinto um calor no rosto, você sabe do que eu falo, parece assim quando a
gente vai encontrar com a namorada, ou então quando vamos fazer aquela viagem
que estava programada há muito tempo, me sinto como uma criança quando chega na
Disney, você já foi à Disney, não foi?
A injeçãozinha do doutor funciona,
vamos colocando de três em três amontoados no barco e ninguém acorda, quando é
criança dá para por quatro, as vezes até cinco, são sempre miúdos, corpo
mirradinho.
Nessa viagem agora eu vou junto,
colocamos só dois adultos e uma criança, precaução, temos que contar eu e o homem
que vai remar.
Procuramos ir mais para o fundo, quanto
mais longe melhor, mas não paramos em um lugar só, mais espalhado é melhor.
O ajudante tira o remo da água e
acomoda em um dos lados dentro barco, o remo resvala na cabeça da criança,
parece que sentiu a água fria, mas foi só um espasmo.
Vamos deixar a criança por ultimo,
pegamos um dos adultos e vamos empurrando o corpo devagarinho para fora do
barco, sem fazer muito barulho, e num instante ele desaparece nas águas escuras. Não sei se a pessoa chega a acordar depois que afunda, mas é melhor
que não, deve ser desesperador acordar com um monte de água por cima.
Agora falta só a menina, tem a cara
suja, mas o rosto até que não é feio, os cabelos loirinhos, o mundo as vezes é
injusto, tivesse nascido em outro berço até que podia ter uma vida decente. O
ajudante vai escorregando os pés dela para a água, o corpo já desceu a metade,
vai soltá-la e ela abre os olhos e me olha, seu olhar me pede alguma coisa, ia
mexendo os lábios, mas não deu tempo, o corpo afundou todo na água.
A madrugada vai alta quando chego em
casa, um lugar confortável aqui pelos lados da Castelo Branco. As crianças
estão dormindo perto da lareira, o frio de hoje justifica. Mas não os acordo,
vou até o barzinho e pego um uísque, é preciso relaxar um pouco. Sento na
cadeira de descanso do lado da lareira, poucos passos a minha frente vejo o
rosto de minha filha dormindo, vejo a mecha dos seus cabelos loirinhos caídos
no rosto, ela abre os olhos e me olha e sinto um leve tremor na mão que segura
o uísque. Mas logo passa.
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