sábado, 7 de setembro de 2013

ENQUANTO DESÇO OS DEGRAUS.



Eu ajeito as peças do tabuleiro. A soma que daria o todo se perdeu nas beiradas e cantos corroídos pelo tempo e uso equivocado.  Você prepara na tigela a salada do almoço, os gestos seguindo um comando que grita de algum vazio do passado. A nossa tolice insiste, a nossa negação nos leva às historias que se repetem desde que o mundo explodiu por aqui. 
Éramos liberais, na nossa forma enviesada de ver a realidade. Lembra? Modernos, nosso andar leve carregava algo da arrogância de quem havia passado um tempo do lado direito de Deus. Aquele sorriso de canto, o olhar de cima, a grosseria embalada de censura refinada a toda ousadia que confrontasse a altivez de quem tudo sabia. 
Eu dobro os lençóis, encho de soco os travesseiros e afasto a cortina para o sol que ainda não veio. Você recolhe o lixo, empilha a louça e com meio copo d’água tenta salvar as begônias que se perderam na terra morta. 
Somos meio que erva daninha, de talos que embruteceram e desfiguram o aço das enxadas, que carrega a sombra de uma flor bela que formava a aparência adequada a toda hora e circunstância. 
Você empacota os últimos objetos. No arremate, um laço vermelho. Espana a poeira que circunda os utensílios que saíram há pouco no caminhão de mudanças. Eu forço o zíper das malas, ato final antes de nos voltarmos para a casa vazia. 
Fizemos uma vida, vivemos uma cidade, experimentamos um mundo, conhecemos o prazer e o horror das nossas qualidades e defeitos. 
Agora ouço você tossindo levemente enquanto desce pelo elevador. Eu bato a porta antes que as memórias deixem as paredes e desço pelas escadas. 
São dez andares e tudo pode acontecer.  

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