Eu ajeito as peças do
tabuleiro. A soma que daria o todo se perdeu nas beiradas e cantos corroídos pelo
tempo e uso equivocado. Você prepara na tigela
a salada do almoço, os gestos seguindo um comando que grita de algum vazio do
passado. A nossa tolice insiste, a nossa negação nos leva às historias que se
repetem desde que o mundo explodiu por aqui.
Éramos liberais, na nossa forma enviesada de ver a realidade. Lembra? Modernos,
nosso andar leve carregava algo da arrogância de quem havia passado um tempo do
lado direito de Deus. Aquele sorriso de canto, o olhar de cima, a grosseria
embalada de censura refinada a toda ousadia que confrontasse a altivez de quem tudo
sabia.
Eu dobro os lençóis, encho de soco os travesseiros e afasto a cortina
para o sol que ainda não veio. Você recolhe o lixo, empilha a louça e com
meio copo d’água tenta salvar as begônias que se perderam na terra morta.
Somos
meio que erva daninha, de talos que embruteceram e desfiguram o aço das enxadas,
que carrega a sombra de uma flor bela que formava a aparência adequada a toda
hora e circunstância.
Você empacota os últimos objetos. No arremate, um laço vermelho.
Espana a poeira que circunda os utensílios que saíram há pouco no caminhão de
mudanças. Eu forço o zíper das malas, ato final antes de nos voltarmos para
a casa vazia.
Fizemos uma vida, vivemos uma cidade, experimentamos um mundo,
conhecemos o prazer e o horror das nossas qualidades e defeitos.
Agora ouço
você tossindo levemente enquanto desce pelo elevador. Eu bato a porta antes que
as memórias deixem as paredes e desço pelas escadas.
São dez andares e tudo
pode acontecer.
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