domingo, 13 de julho de 2008

NORTE TODA VIDA

Um romance narrado no fluxo do pensamento, sem cortes. O desespero de um homem sem retoques. Difícil de ler, eu sei. Quando escrevi este romance, foi desta maneira que saiu, sem ponto final, tudo em letras minúsculas, sem pausa pra descanso.
Eu penso que se um escritor, cineasta, dramaturgo, tiver que explicar sua obra ou as razões pelas quais certas coisas são colocadas de determinada maneira, então não vale a pena se dar ao trabalho. Um autor não deve abarcar tudo, cercar todos os lados. Tudo o que ele quer dizer encontra-se lá. Enxergar esse tudo compete a quem lê, a quem vê, a quem assiste. Eu quero dizer que é preciso deixar espaço para o questionamento do outro. Para mim não ha nada pior do que um livro, filme ou uma peça de teatro onde tudo foi devidamente explicado, de onde eu saio sem qualquer tipo de dúvida. Dez minutos depois eu já nem me lembro mais do que se tratava. Vai um trecho aí abaixo, pra você entender do que estou falando:
uma prateleira de três tabuas cheias de nós, uma cama de solteiro, um lençol, um travesseiro, um cobertor, dois dicionários, uma agenda, duas calças sobre o esqueleto de uma cadeira, duas camisas, duas cuecas, três pares de meias, um despertador de dois reais, uma escova de dentes, uma escova de cabelo, uma sacola, um par de sapatos, um par de tênis, um cinto, um vidro de perfume no final, um caderno, uma caneta, os cabelos compridos, as unhas compridas, os óculos de lentes riscadas e aros tortos de tinta descascada e hastes curvas que escapam das orelhas, a barba de alguns dias e as bolhas de ácido úrico soltando da sola dos pés, os olhos ansiosos, a vida ansiosa e um tempo indefinido, passos vacilantes e um tremor na alma, medo, neste buraco masmorra de sombras e rachaduras e neste final dos tempos e afundado entre os joelhos, com a caneta tremula eu rabisco um mapa e um destino para esta noite, as paredes balançam e a luz igual, um fiapo, ela que entra por um vão junto ao teto, zona sul, um quarto sem forma cheio de cantos, oito horas da noite, a carta está terminada, destino norte, sempre norte, siga o norte, não fuja da linha, há um tempo te perseguindo e uma urgência te atropelando, há eles, não tomei banho, não posso maquiar o defunto, abro a porta, se for porta, à frente um mundo cego da gente cega desta cidade cega, a bala na agulha, matar ou morrer, quem não é visto não é lembrado, a primeira impressão é a que fica, antes tarde do que nunca, não deixe pra amanhã o que pode fazer hoje, os últimos serão os primeiros, casa de ferreiro espeto de pau, conhece a ti mesmo, o que os olhos não vêm o coração não sente, Deus ajuda a quem cedo madruga, uma oração a Deus e outra ao diabo, o mundo é dos espertos, quem dá aos pobres empresta a Deus, tempo é dinheiro, fazer o bem sem olhar a quem, vale o escrito, em boca fechada não entra mosquito, Deus às vezes dá milho pra cavalo banguela, há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia, quem vai atrás come poeira, nem só de pão vive o homem mas também das palavras de Deus, quem não arrisca não petisca, quem não chora não mama, quem muito fala dá bom dia a cavalo, a curiosidade matou o gato, atire a primeira pedra aquele que não sofreu por amor, eu a conheci aos 17, numa viela escura, numa fuga do ginásio, numa febre de corpo inteiro os dois, tinha a pele branquinha, peitos pequenos e duros, tudo liso e firme como é nesta idade, um trecho deserto por volta das nove da noite, escorregamos e rolamos por um matagal barranco abaixo e nos acomodamos no fim, eu sobre ela, tinha uma coisa diferente nela e em mim naquele dia, em mim mais, porque o mundo aliviou uma dor por um momento e eu imaginei que podíamos ser como todos aqueles casais felizes que eu via de mãos dadas numa hora qualquer do dia, no trem, no ônibus, numa hora em que se pára pra sonhar em silêncio um sonho comum mesmo sem perceber, falo das coisas simples, imperceptíveis, um gesto pego pelo rabo e que não se repete em seguida, eu sonhei com ela, feliz por um instante e pra sempre dali pra frente, me vi com ela e filhos numa casa de cerca baixa, sentados todos nós no muro do alpendre olhando uma paisagem aberta que não era mostrada, ela beijando o meu rosto, eu voltando do trabalho e ela me abraçando e eu a ela e as crianças na entrada do portão, um ônibus velho passando em frente, um ônibus antigo amarelo que seguia devagar e ela escancarou uma gargalhada que ecoou pela noite, pelas ruas em volta e me parece que em todas as casas as luzes se acenderam e todos vieram ver o motivo daquele riso de escracho, alto e belo e cheio de desprezo e deboche, todos os risos que ouvi na minha vida, gargalhadas como aquela, ecoavam por uma avenida, uma boca escancarada de mulher, eu estático e paralisado, me distanciando aos poucos, como o recuo de uma câmera erguendo-se numa grua, quando o diretor, cheio de idéias e genialidades várias quer frisar a eterna solidão de um homem, um autêntico imbecil cheio de boas intenções, você pode achar que é assim, que as coisas acontecem porque eu quero ou porque você determina, que o mundo aí a tua volta está sob o teu controle, que os caras deixam você fazer o que quiser da tua vida, você pode achar, /// ta, então fica com Deus, eu tinha medo de mim, do que eu era e podia ser, do que se passava na minha cabeça e como eu olhava o mundo, eu podia ter sido um homem-bomba e estraçalhar corpos e fazer manchetes lucrativas e sempre bem-vindas pela mídia, podia ter sido um astro de Hollywood de filmes de ação e seus bandidos latinos, russos ou chineses ou qualquer outro alienígena que não seja o glorioso homem americano, podia ter chegado à lua num foguete recuperado da base de Alcântara e movido a dendê e dizer a terra é azul em português e trocar o avanço científico pelo escracho e bom humor, ter varado a Sibéria no trem que vai até Vladivostok ou descido pra Pequim pela Mongólia e Manchúria pra saber quantos quilômetros são necessários pra se esquecer do mundo, eu podia ter ido ver a pesca do bacalhau em Alessund nas águas geladas do mar da Noruega e esticado até Helsinki, pra entender a língua estranha falada na Finlândia e ver se existem mesmo pobres por lá como nos disse Kaurismaki, eu podia ter matado mil pessoas num dia de futebol com uma bomba caseira e virar celebridade e escrever um livro e me tornar um best-seller e objeto de estudo e vender os direitos para a megaprodução de um blockbuster, onde a tragédia ganha glamour e se espalha como arte pelo mundo afora, eu podia ter sido um apresentador de televisão e ter cem por cento de audiência durante vinte anos e pregar valores e conceitos morais e o politicamente correto, enquanto sustentava um sistema cínico do sucesso a qualquer preço, tido um teatro e um cinema de peças e filmes alternativos e cults e usar barbichas e roupinhas e tênis de brechó e andar com o olhar a meio pau e determinar sucesso e fracasso conforme meu humor despertasse ao meio-dia, ter voado num balão e ver massacres ao vivo nos desertos africanos, sentir o cheiro da carne podre dos mortos sobre o solo de Darfur até o Chifre da África, sem compreender porque se morre fácil nos lados que o mundo decidiu esquecer, varado até além do mar vermelho, por sobre o trilionário e isento e cínico território saudita, e adentrado o solo iraquiano de onde sobe fumaça de morte e óleo queimado e dali ao Irã na boca da bomba e bola da vez da beira de um ataque de nervos americana, e na volta subido e descido e passado um tempo na Groelândia pra saber como o frio me mataria quando eu me lembrasse do sol da minha terra abaixo do equador, eu tinha medo do que se passava na minha cabeça quando era menino, quando olhava o céu pela manhã e sabia que não estaria ali no dia seguinte, eu tinha medo dos rios de cheia, da água barrenta, das pontes de madeira, eu tinha medo do que eu era quando adulto, as coisas que eu fui virando aos poucos dentro da minha cabeça, conforme eu fui assimilando e fingindo entender, porque na verdade não sei de nada, não sei quem sou e nem pra que serve tudo isto, qual o propósito desta repetição, os espiritualistas têm um alivio pra isto, carma, faz parte da missão, o alivio para as culpas de todos se tudo se justifica no ato de pagar uma conta de outra época, posso dormir melhor se souber que todas as desgraças do mundo tem um propósito claro e justificável, divago, eu tenho medo desta noite e do que estou vendo pelo caminho, não as pessoas nem coisas, nem tudo aquilo que acontece nesta cidade tarde da noite, as coisas que estou vendo são outras, aquelas transportadas das paredes do meu buraco de cantos e que vão aos poucos se encaixando, clareando o significado, é disto que eu tenho medo, era disto que eu tinha medo antes de sair, uma aglomeração na saída da São Gabriel para a Santo Amaro, um desses ônibus articulados perdeu o controle na descida da Brigadeiro, naquele jeito de carregar porcos que eles aplicam ao sistema de transporte de massas, e despencou do pontilhão sobre a avenida, coisa de agora, tanto que nem policia ou bombeiros chegaram, os curiosos sentem o cheiro e se amontoam, latomia, alguns arrebentam as janelas do ônibus pra saírem, outros saem pelos vidros já quebrados, gemidos e gritos de desespero dentro e fora, algazarra, o transito vai empedrando, buzinas, enfia no cu, gente amaldiçoando no ponto de ônibus porque agora vai atrasar tudo, é pouco mais de nove da noite, o motorista deve ter sido esmagado, suas pernas estão pra fora pelo lado da sua janela, os que saem falam de mais gente morta lá dentro, um carro da polícia chega e já vai tentando botar ordem na coisa, um carro de bombeiros vem pela Santo Amaro na contramão, um grupo na janela do Friday´s faz fotos com celulares enquanto riem e comem seu isopor, outro grupo na porta de uma lanchonete faz piadas do acidente e dos povos baianos lá dentro, eu entro e peço uma cachaça porque a coisa vai longe, não que eu me importe, não será o primeiro nem o último, não que eu não sinta, é apenas um em que estamos participando, amanhã teremos esquecido e outros piores virão porque a vida segue e depois ta na conta das orações e aumenta o crédito com Deus, lembro de um escritor me dizendo uma vez na calçada de um hotel no Rio de Janeiro, ele sentado com seu livro sobre as pernas e eu com minha maleta de executivo esperando o tempo passar pra ir num puteiro ali perto, ele olhou pra mim com certa atenção e depois disse pra eu não fazer a curva da vida muito cedo, eu sorri por educação sem entender a frase, mas não queria estender a conversa, ele estava com a barba de alguns dias, a roupa era de boa qualidade mas parecia que ele estava dentro dela já há algum tempo, os sapatos sobre a calçada, ele massageava os pés, perguntei do livro, ele me estendeu o próprio, Guaiú, o título, não me ocorreu o significado mas ele adiantou, falatório, confusão, eu olhei algumas páginas, nunca fui de leitura que eu não consiga entender na primeira página, era o caso, um amontoado de palavras, letras miúdas, era um cara bem mais velho que eu, na época com vinte e três e o mundo nas mãos, ele sorriu quando eu devolvi o livro sem muito interesse, ele quis saber onde eu ia, eu tentei desconversar, ele gargalhou, uma coisa meio amarga, quase meio maldição, mas não era, era desespero, um sujeito ri sem motivos em certas situações da vida, um jeito de espantar alguma coisa, de enganar a si ou matar o que não tem remédio, calçou os sapatos e levantou-se com alguma dificuldade, senti um bafo de bebida, mas ele estava firme, era um bafo azedo, da bebida constante, um sujeito assim nem se abala mais se mantiver a conta, apenas fica um palmo acima do mundo, se contorcendo em outras estradas enquanto espera o dia chegar, ele se ofereceu pra ir comigo ao puteiro, eu sorri, ele também, e disse que faria a mesma coisa que eu se tivesse a minha idade e estivesse sozinho numa cidade como aquela, fomos parar num bar perto da praça Mauá, mesas e cadeiras escuras, lugar com história pra contar pelas paredes e pessoas de pele trincada de sol, próximo do sobe e desce nos navios, da carga e descarga de caminhões e trabalhadores da estiva, sentamos numa mesa na calçada, noite quente, ele repetiu a frase, pra eu não fazer a curva da vida muito cedo porque isto quem faz são os acidentes, aqueles que matam e outros piores, os que aleijam, evitar o que vai além do físico e afunda e gruda na alma, que leva a desistência, ao começo da descida, quando alguns partem pra certas conversas fiadas sobre a beleza interior, a inutilidade da busca pela riqueza e conforto, a importância dos pequenos detalhes, como se os detalhes não fossem todos pequenos, a sabedoria que chega com o tempo, e no caso era, ali, ele, uma questão pura de entrega, um escritor sem lugar ou o aqui e ali era o seu jeito de se ajeitar no mundo, pé na estrada por falta de alternativa ou só o desejo de estar sozinho, uma revolta contra a vida contida por um sorriso e um ar transgressor, foi esse o meu julgamento, temos a resposta pra tudo e o quadro completo da vida quando somos jovens, é fácil rotular um indivíduo e coloca-lo na gaveta mais conveniente, ele foi bebendo além da medida e uma hora sumiu para o banheiro, não voltava mais, eu desisti e paguei a conta e atravessava a rua quando alguém me gritou de volta, primeiro um depois vários me gritando, faziam gestos vigorosos da porta do bar, eu relutei, já tinha sido um alívio voltar pro meu caminho, ficar sozinho pra fazer o que eu quisesse, não teve jeito, entrei no bar e aconteceu que o velho tinha se matado no banheiro com um corte no pescoço, do lado do corpo um canivete pequeno, antigo, mas que foi o suficiente pra fazer o estrago, me perguntaram coisas sobre ele, expliquei que não o conhecia, um cara que estava no balcão me passou o livro dele, disse que o velho tinha lhe dado ao passar na direção do banheiro, abri o livro e tinha uma dedicatória pra mim, eu fechei o livro e fui saindo, queriam que eu ficasse, não tinha policia ainda e ninguém ia ligar, era só um velho que ninguém conhecia, um velho com um livro na mão e nenhum documento no bolso, pus o livro na maleta e fui embora, tentei ler o livro várias vezes, mas não consegui, não porque fosse difícil e nem era, mas porque me lembrava a toda hora do sorriso do velho na mesa do bar me falando sobre os riscos de fazer a curva da vida cedo demais, demorei pra entender ou talvez nunca tenha entendido o ponto de vista dele, mas agora, olhando este acidente e os que ficaram lá dentro do ônibus, não há filosofia nenhuma a ser compreendida lá, a curva que ele disse era esta outra aqui, que em geral não mata na hora, mas aleija pra matar aos poucos, no bom e lento suicídio, vários corpos saíram daquele ônibus, uma pena que o motorista não tenha tido chances de ver quantos matou, quem anda nesses ônibus sabe o que é ser transportado feito animal, e o pior,

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