segunda-feira, 12 de maio de 2008

O CAMINHO NATURAL DAS COISAS.

Sou proprietário de uma cobertura num edifício de alto padrão muito próximo da avenida 23 de maio. De lá observo a grande área verde do Parque do Ibirapuera, o planalto onde se encontra a avenida Paulista, os prédios de luxo de Moema e as mansões do Morumbi, o aeroporto de Congonhas e assim vai. Quando tenho tempo, e isto se dá sempre ao entardecer, gosto de observar o que me rodeia. Dias atrás, alguma coisa me incomodava. De minha varanda, enquanto tomava um bom champagne e revisava um organograma de aplicações financeiras, eu percebi uma grande quantidade de urubus sobrevoando e assentando sobre o topo de um hospital público ali perto. Acompanhei o fato durante três dias, pois este é um assunto relevante dentro das minhas atribuições no comando da cidade.
Alguns dias depois, fui fazer uma visita ao tal hospital. Vesti-me como um cidadão comum, “desses que se vê na rua, falava de negócios, ria, via show de mulher nua...(Belchior)” e entrei pela porta de atendimento aos populares, aqueles que se amontoam por ali todas as manhãs, que aguardam senhas e algum sorriso vago ou um simples “bom dia”. Depois de dois minutos na fila, dei-me conta que não era necessário um sacrifício imenso daqueles apenas para passar despercebido. Esgueirando pelos corredores e reconhecendo algumas portas, cheguei até o topo do edifício. Confesso que na subida me incomodava o cheiro que havia se impregnado na minha roupa, naqueles dois minutos na fila. O mesmo cheiro que eu sentia às vezes quando passava por funcionários nas alas de garagem e departamentos de serviços gerais, um cheiro denso, de suor, de ônibus cheio, de gente ofegante esperando alguma coisa que jamais chegará...No topo do edifício, a área destinada ao lixo, de um cheiro podre insuportável e onde enormes sacos pretos e tambores se amontoavam, estava tomada pelos urubus, que reviravam tudo e sequer se importaram com a minha presença. Embora a vontade fosse sumir imediatamente daquele lugar, andei um pouco pelo meio de tudo aquilo e pude observar alguns procedimentos altamente irregulares.
Na descida, já não tendo mais que disfarçar minha condição, parei na sala do diretor do hospital que fica numa área recentemente construída, apartada de todo o resto, e decorada conforme as necessidades de qualquer cargo executivo. São os procedimentos normais. Alguns ganham, outros perdem. Sobe-se, ganha-se. Os insatisfeitos de sempre vão aos jornais buscar a compensação pela sua incompetência. Pedi desculpas pelo cheiro da roupa e ele me abraçou da mesma maneira. Cordial como sempre, comentou que se era capaz de suportar aquele cheiro pelos corredores do hospital, porque não o suportaria no corpo de um grande amigo, ainda mais sabendo que com certeza eu estaria ali por alguma razão muito importante. Serviu-me um uísque e nos sentamos em duas poltronas de couro, em frente a um jardim em estilo japonês, de pequenos lagos cheios de carpas coloridas. Falamos da vida social da cidade, dos novos empreendimentos imobiliários de altíssimo padrão, de um empréstimo do BNDES que ele aguardava para a construção de um Hospital-Hotel padrão 5 estrelas, das eleições americanas e da esperança em McCain, do absurdo de se introduzir cotas raciais nas universidades e o risco de se estabelecer o racismo no Brasil, uma chaga da qual, Graças ao bom Deus estamos livres, e falamos da corrupção, da degradação dos valores morais, e todas as aflições normais do cidadão correto que somos. Na saída, depois de nos despedirmos, lembrei-me de avisa-lo rapidamente sobre o problema do lixo no alto do edifício e que conforme instruções anteriores, os fetos provenientes dos abortos que eram feitos no subsolo do hospital não deveriam de forma alguma serem descartados daquela maneira. Disse-lhe inclusive que um dos fetos que vira lá em cima ainda tinha uma cor rosada, como se estivesse vivo até minutos antes da minha chegada. Ele argumentou que devido às novas instruções da prefeitura, as empresas de cosméticos estavam relutantes em recolher os fetos que utilizavam na elaboração dos seus produtos como era feito anteriormente, com medo de que alguma noticia pudesse vazar para a mídia e compromete-las junto à opinião pública. Eu prometi rever alguns pontos da nova portaria, de modo a viabilizar a continuidade dos procedimentos, já que não era possível aquela imagem de urubus sobrevoando um hospital público. Não ficava bem para o hospital, nem para a prefeitura e ainda comprometia a bela vista que eu tinha da minha varanda.
Hoje vejo que os urubus sumiram, o que indica que tudo deve ter voltado ao normal lá no hospital. É bom assim.

2 comentários:

Anônimo disse...

Se o Marinho ainda fosse vivo, ele poderia se utilizar deste "manjar" contra a velhice.

Luiz D. Lago disse...

O que o Marinho gostava era feto de ovelha...pelo era o que dizia aquele diretor maluco.
Um abração.